Uma das coisas mais incríveis em relação à obra do Sergei Eisenstein é que ela sempre dialoga com o momento em que estamos passando, de um jeito ou de outro. 

O Encouraçado Potemkin (1925) foi um filme comissionado pela Mosfilm e conta a história real da rebelião dos marinheiros do navio de guerra Potemkin que aconteceu em 1905 e passou a ser considerada uma prévia da Revolução Russa de 1917. Muitos historiadores discordam dessa suposição, dizendo que os marinheiros que participaram da revolta de 1905 nada tinham de comunistas uma vez que faziam parte da classe trabalhadora e não estavam necessariamente ligados a nenhuma corrente política específica.

CONSCIÊNCIA DE CLASSE É PARA TODOS

O longa inicia contando o drama dos marinheiros, dos maus tratos a que eles eram submetidos que culmina com as reclamações que as carnes que lhes são servidas estão podres, elas não serviriam de alimento nem mesmo aos porcos. Um dos oficiais analisa a carne e ao ver a quantidade de larvas que tem ali deixa claro que isso não é um problema, oras, é só lavar a carne antes do consumo!

Com uma montagem idealizada para que o espectador não fosse um agente passivo ao ver o filme, as imagens e cortes rápidos movem a história em uma tensão crescente que chega à revolta em si, quando alguns marinheiros se recusam a comer o borscht, uma sopa tradicional russa, e os oficiais do navio ordenam a execução deles. O canal do Cinemascope no youtube tem um vídeo chamado Propaganda e Política no Cinema Russo onde aprofunda nas questões políticas da época e também no estilo de montagem do Eisenstein, imperdível para quem quer entender melhor de onde vem parte da genialidade dos russos. 

Vakulinchuk (Aleksandr Antonov), um dos marinheiros, grita aos soldados para que eles prestem atenção se estão com os oficiais ou com os marinheiros, seus reais companheiros. Fica evidente aqui a necessidade de destacar a quem pertence o poder e a cena, uma das poucas com um letreiro indicando exatamente o que o marinheiro está dizendo, é a tomada de consciência que o governo soviético espera de seus camaradas. Quando os soldados abaixam os rifles os marinheiros ganham coragem extra e insurge uma batalha pelo Encouraçado e os oficiais são derrotados, mas antes disso Vakulinchuk é morto. 

O navio então atraca no porto da cidade de Odessa, para que Vakulinchuk possa ser enterrado com o respeito que merece e a cena mais bonita do filme acontece. Colocam o marinheiro em uma tenda com uma placa que diz “Morto por um prato de sopa” e do lado de fora vemos o pôr do sol no cais. Eisenstein foi um grande pensador da montagem cinematográfica nos anos 20 (e do cinema como um todo) escrevendo vários textos sobre o tema, e com essa sequência ele deixa claro que a sua intenção não era somente a construção da tensão, mas da narrativa como um todo, trazendo a tona sentimentos no espectador que dificilmente seriam alcançados sem o trabalho meticuloso que ele coloca na construção dos seus filmes. Afinal, não conhecíamos o suficiente sobre Vakulinchuk para nos apegarmos ao personagem e sentirmos aquela morte tão profundamente, mas ele manipula as imagens com tanta perfeição que não conseguimos sair ilesos dessa experiência.

O filme é carregado sempre pela idéia central, sem uma figura ou personagem fixo que leva a trama para seu destino final. Isso faz com que o espectador encontre dentro daquele universo cinematográfico todas as pessoas e lugares que ele precisa encontrar para entender seu próprio lugar. Você é o oficial que que mataria seus companheiros sem pestanejar, ou o marinheiro obrigado a comer a carne cheia de larvas?

Na placa, morto por um prato de sopa.

POESIA E LUTA

Os moradores da cidade se sensibilizam ao ver o corpo do marinheiro no cais, e logo se forma uma fila gigantesca onde todos querem prestar suas condolências e uma onda de protestos em apoio aos demais tripulantes do Encouraçado toma conta da cidade. O exército é chamado para conter a população e se inicia um grande banho de sangue na cena mais emblemática do filme, a da escadaria de Odessa. 

Muito se fala da tensão que surge quando o exército mata a mãe do bebê em seu carrinho e esse passa a descer as escadas desgovernado no meio de todo o desespero da população mas, antes disso, em uma das minhas sequências favoritas do filme vemos uma mãe com seu filho, ambos descendo correndo a escadaria quando um dos tiros acerta o menino. A mãe o pega no colo e ao invés de continuar descendo as escadas, ela decide subir e encarar os soldados, mostrando pra eles o que eles fizeram com uma criança indefesa que estava tentando fugir, pedindo ajuda para que eles pudessem salvar o seu filho. Sem pestanejar ela é alvejada pelo exército da mesma maneira que o seu filho e os soldados passam por cima dela para chegar ao resto da população sem ao menos olharem para baixo. 

Os marinheiros, ao verem o massacre acontecendo na escadaria miram seus canhões para a cidade e passam a destruir os prédios do governo e do exército que podem alcançar mas eles também precisam se preocupar com um outro navio que está chegando com ordens para atirar em todos do Encouraçado.

Novamente Eisenstein pergunta ao espectador de que lado ele está: você é uma daquelas mães e filhos sendo assassinados sem possibilidade de defesa ou você faz parte da cavalaria de elite que passa por cima de tudo e todos que estiverem à sua frente?

O NOVO HOMEM SOVIÉTICO

Dentro de um filme de 1 hora e 15 minutos Eisenstein trata da luta de classes, da soberba da elite, da visão deturpada dos militares de que são maiores que o resto da população, e, principalmente, da noção de que o povo unido consegue sim mudar paradigmas. 

Lembrando que foi um longa comissionado pela União Soviética para despertar no povo esse sentido de união e pertencimento; ele fazia parte da construção do novo homem soviético. A Revolução de 1917 foi extremamente traumático ao povo russo, e os anos seguintes foram repletos de revoltas e uma guerra civil que dizimou milhares de pessoas. O território russo era ainda mais gigantesco que hoje com um nível de analfabetismo imenso e retrocesso econômico sem igual. 

O conceito de se “construir”’ um novo homem e mulher surgiu para transformar étnica, cultural e linguisticamente todos os povos que pertenciam a URSS em apenas um povo, o povo soviético. E essa construção tinha o cinema como ferramenta para chegar facilmente as massas mais afastadas e assim, de uma forma teoricamente simples, passar a imbuir os dogmas e éticas comunistas a toda população. E O Encouraçado Potemkin foi um dos primeiros filmes dessa empreitada.  

Mas isso não tira do cineasta os méritos de um filme atemporal. Não só pela sua inovação técnica na montagem (assinada pelo próprio Eisenstein e Grigoriy Aleksandrov) mas também por despertar reações tão viscerais nos espectadores sem utilizar de uma personagem principal carregando a trama.

 

A teoria da montagem soviética é abordada em detalhes no curso Introdução à Linguagem Cinematográfica ministrado pelo professor Donny Correia. Mais informações no link abaixo.

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