Por Rafael Ferreira

O mal pode assumir várias formas, representado no cinema e na literatura por vampiros, lobisomens, bruxas, alienígenas, monstros, e versões deformadas de nós mesmos. O Exorcista, no entanto, vai além, e retrata o mal da forma mais apavorante possível, manifestado através de uma criança corrompida, Regan MacNeil, uma menina comum de doze anos, que é tanto a antagonista quanto a vítima. Para alguns, o filme é uma propaganda ao catolicismo, para outros é um filme sobre o diabo, para aqueles sem crença, é uma excelente obra de arte que nos faz questionar a fé. Curiosamente, o filme e livro foram inspirados numa história real.

Na noite de 15 de janeiro de 1949, em Maryland, um menino de 14 anos, John Hoffman, começou a ouvir ruídos estranhos e sem explicação em sua casa. Depois da morte da tia de John, o fenômeno se intensificou, comida voava pelos ares e os móveis se moviam sozinhos. Os pais de John tentaram se comunicar com a falecida, e as respostas vinham marcadas na pele de John, porém, nenhum médico ou psiquiatra conseguiu detectar qualquer problema com John. Apesar de serem Luteranos, seus pais, consultaram um padre católico romano, mas as manifestações se intensificaram. Em 16 de março do mesmo ano, a igreja autorizou o padre a realizar um exorcismo que durou uma semana e não surtiu efeito. Os pais de John autorizaram o padre a convertê-lo ao catolicismo, o que também não ajudou em nada a situação. Na noite de 18 de abril, durante um ritual de exorcismo, John teve um espasmo violento, e subitamente voltou ao normal. John Hoffman viveu uma vida normal após esta data, sem se lembrar de qualquer acontecimento.

Este fato virou notícia nos jornais, e chamou a atenção de um jovem escritor da Universidade de Georgetown, William Peter Blatty. Alguns anos mais tarde, este mesmo escritor se tornara um talentoso roteirista, autor de clássicos da comédia ao lado de Blake Edwards, conhecido pela franquia da Pantera Cor-De-Rosa, até estas perderem a popularidade no início dos anos 1970. Convencido de que poderia escrever de forma respeitável para outro gênero, Blatty retornou àquele fato que lhe chamara a atenção sobre o exorcismo do garoto, escreveu um romance inspirado naqueles fatos e em 1971 publicara O Exorcista. Caso tenha curiosidade, este livro foi recentemente publicado pela Editora Agir.

William Peter Blatty (esq.) , autor do romance e do roteiro. Capa do romance (dir.), edição de 40º aniversário.

William Peter Blatty (esq.) , autor do romance e do roteiro. Capa do romance (dir.), edição de 40º aniversário.

Blatty tinha interesse em adaptar seu romance para as telas do cinema, mas os estúdios sempre recusavam o roteiro, não por questões financeiras, mas por medo. Após uma série de negociações, o filme ganhou sinal verde para ser produzido, a única ordem era que tratasse o assunto de forma séria, quase como um documentário, sem defender um ponto de vista, e para conseguir isso o diretor escolhido não poderia ser católico ou ter algum tipo de doutrina, a escolha ideal foi William Friedkin, que dirigira vários documentários para TV assim que terminou o segundo grau, e vencedor do Oscar de Melhor Diretor por Operação França (1971).

O elenco principal também fora escolhido de forma criteriosa, vários astros da época queriam interpretar o Padre Karras, dentre eles estavam Jack Nicholson e Paul Newman, mas ao escolher um astro, o público ficaria distraído pela sua presença, a solução era encontrar um padre que pudesse atuar, e assim optaram por Jason Miller, que não era padre, mas convenceu Friedkin após dizer que havia ganhado um Pulitzer com a peça que escrevera, O Campeão Da Temporada.

Para o papel do Padre Merrin, Friedkin queria alguém que se parecesse com Pierre Teilhard de Chardin, o padre jesuíta, teólogo, filósofo e paleontólogo que tinha uma mente aberta e conseguia conciliar ciência e teologia, logo a primeira escolha foi Max Von Sydow, o ator sueco que trabalhara em inúmeros filmes de Ingmar Bergman. Para Von Sydow, o Diabo é um ser ridículo, que ele estava acostumado a ver em contos de fadas e contos folclóricos, sempre como um perdedor. Curiosamente, você pode ver Von Sydow interpretar Deus em A Maior História De Todos Os Tempos (1963), o Diabo em Trocas Macabras (1993), e o Caronte em Amor Além Da Vida (1998).

Audrey Hepburn era uma possível escolha para interpretar Chris MacNeil, o estúdio apoiava esta decisão por causa da boa reputação da atriz, mas ela apenas aceitaria se as filmagens fossem em Roma. Além de Hepburn, outras possíveis escolhas do estúdio eram Jane Fonda que recusou o papel graças aos seus ideais anti-Vietnã, Shirley MacLaine e Anne Bancroft, que estava em seu primeiro mês de gravidez. Felizmente Ellen Burstyn procurou Friedkin, decidida a interpretar Chris MacNeil.

Friedkin tinha uma lista de cerca de 40 atrizes mirins para representar Regan MacNeil, incluindo a jovem Jamie Lee Curtis, cuja mãe, Janet Leigh, a proibira de fazer o teste. O papel acabou sendo de Linda Blair, que já havia participado de 75 comerciais. Seu teste fora uma série de xingamentos, o que a deixou constrangida em contar para sua mãe. O elenco de O Exorcista não era formado por estrelas, mas por atores/atrizes, o que nos convence melhor de que aqueles personagens são pessoas comuns.

Da esquerda para a direita, de cima para baixo: o diretor William Friedkin; o ator Jason Miller; o padre jesuíta Pierre Teilhard de Chardin, que serviu de inspiração para a personagem do Padre Merrin; o ator Max Von Sydow, que interpreta o Padre Merrin; a atriz Ellen Burstyn; a atriz mirim Linda Blair.

Da esquerda para a direita, de cima para baixo: o diretor William Friedkin; o ator Jason Miller; o padre jesuíta Pierre Teilhard de Chardin, que serviu de inspiração para a personagem do Padre Merrin; o ator Max Von Sydow, que interpreta o Padre Merrin; a atriz Ellen Burstyn; a atriz mirim Linda Blair.

 

Teste de elenco de Linda Blair. Este foi um segundo teste, desta vez não há motivos para se sentir constrangida:

Se o elenco não o convence de que tudo aquilo é real, suas atuações o fazem, pois muito do que se vê na tela são reações genuínas, uma obra de um diretor sádico que chega aos extremos só para conseguir o que quer. Friedkin chegou a atirar uma arma atrás de Jason Miller para filmar sua reação de susto ao ouvir o telefone tocar; quando Padre Dyer dá a extrema unção ao Padre Karras, Friedkin não estava satisfeito mesmo após várias tomadas, ele então levou William O’Malley para um canto e lhe deu uma bofetada no rosto, e o resultado é a reação que está no filme; na cena em que Regan se masturba com uma cruz e dá um tapa em sua mãe, Friedkin pediu para um membro da equipe puxar Ellen Burstyn com toda sua força, o grito que ela dá ao cair ao chão é o resultado de uma costela quebrada. Friedkin era um carrasco, mas conseguiu tirar o melhor de cada um, até mesmo da equipe técnica, cujo trabalho impressiona mais do que muitos filmes recentes.

A maquiagem usada por Linda Blair para parecer estar possuída por um demônio é referência para muitos filmes de terror atuais, os primeiros testes de maquiagem de Regan se pareciam com uma fantasia de bruxa de halloween, Friedkin as recusou, até que finalmente o responsável pelos efeitos especiais, Rick Baker, e pela maquiagem, Dick Smith, criaram um conceito de que suas feridas seriam causadas por ela mesma. Smith é conhecido por ter transformado Marlon Brando de um galã para um velho Don Vito Corleone alguns anos antes, e aqui repete a façanha transformando Max Von Sydow que então tinha 44 anos de idade, com uma aparência de 80.

De nada valeria essa transformação física pela qual Linda Blair passara se ao abrir a boca saísse uma voz doce, Friedkin então pediu para que a voz de Regan fosse distorcida, e depois de 150 horas de trabalho do editor, Friedkin ainda não estava satisfeito. A solução era encontrar uma voz neutra, não muito feminina, nem masculina. A escolhida fora Mercedes McCambridge, que para conseguir o tom certo para a voz, McCambridge se prontificou a engolir ovos crus, fumar excessivamente, e beber whisky.

Da esquerda para a direita, de cima para baixo: quatro testes de maquiagem de Regan MacNeil possuída, todos reprovados; abaixo, em cores, a versão final da maquiagem; as duas imagens no meio mostram a aparência de Max Von Sydow na época da produção do filme, e após a maquiagem para envelhecê-lo; por último, Mercedes McCambridge, a voz do demônio.

Da esquerda para a direita, de cima para baixo: quatro testes de maquiagem de Regan MacNeil possuída, todos reprovados; abaixo, em cores, a versão final da maquiagem; as duas imagens no meio mostram a aparência de Max Von Sydow na época da produção do filme, e após a maquiagem para envelhecê-lo; por último, Mercedes McCambridge, a voz do demônio.

Todas as escolhas tomadas por Friedkin, por mais sádicas e absurdas, culminam num espetáculo emocional e visual, contrastando entre momentos de total silêncio e outros de barulho excessivo logo em seguida, entre planos claros contrastando com outro de pouca luminosidade, uma característica que também pode ser observada nas obras L’Empire des lumières (O Império das Luzes) do artista surrealista René Magritte, que constrói uma imagem misteriosa a partir da antítese entre céu claro e a escuridão da Terra, por conseqüência a obra de Magritte também serviu de inspiração para um dos momentos mais icônicos deste filme, assim como para o pôster.

Acima, duas imagens da série de pinturas L'Empire des lumières de René Magritte; Abaixo, duas cenas icônicas do filme, que estruturalmente marcam o primeiro e o segundo ponto de virada do filme. Ambas as cenas fazem uma “rima visual” onde o Padre Merrin encara o demônio.

Acima, duas imagens da série de pinturas L’Empire des lumières de René Magritte; Abaixo, duas cenas icônicas do filme, que estruturalmente marcam o primeiro e o segundo ponto de virada do filme. Ambas as cenas fazem uma “rima visual” onde o Padre Merrin encara o demônio.

É reconhecido o fato de que um filme que carrega consigo polêmicas dos bastidores tendem a gerar mais curiosidade do público, como as mortes que envolvem A Profecia (1976) e A Encarnação Do Demônio (2008), em O Exorcista não é tão diferente. Em uma entrevista para o documentário da BBC The Fear of God – 25 Years of “The Exorcist”, Ellen Burstyin relata as mortes envolvendo pessoas ligadas à produção: 1) Jack MacGowran, que interpreta Burke morreu de pneumonia pouco depois do lançamento do filme; 2) Vasiliki Maliaros, que interpreta a mãe de Karras também; 3) Um irmão de Max Von Sydow faleceu pouco depois dos inícios da filmagem; 4) O bebê de um dos operadores de câmera cuja esposa havia dado a luz; 5) O homem responsável pela refrigeração do set; 6) O avô de Linda Blair falecera; 7) Um segurança noturno que trabalhava no set foi morto a tiros; 8) Linda Blair previu inadvertidamente a morte de um membro da equipe durante as filmagens; 9) Um velho padre que encontrou com Jason Miller num restaurante enquanto este estava num restaurante estudando suas falas, lhe advertira sobre os perigos de se lidar com o demônio e lhe dera um medalhão para proteção espiritual, faleceu três dias após seu encontro com o ator. Além das mortes, eventos estranhos também aconteceram durante a produção, como o misterioso* incêndio que destruiu o set de filmagem durante um final de semana.

*A perícia não conseguiu encontrar a causa do incêndio. Acreditava-se que o filme era amaldiçoado, um padre então fora chamado para exorcizar o set. Casos estranhos são relatados pela internet por meros espectadores, basta entrar em sites como “sobrenatural”, “assombrado”, ou “assustador”, porém, estes relatos são justamente a bagagem que as pessoas trazem consigo.

Os anos 1970 marcam um período de transformação da sociedade, haviam passado pela fase do “sexo, drogas e rock n’roll”, pela Guerra do Vietnã, e a sociedade não queria mais se conformar, e sim abraçar o espírito da rebeldia contra o sistema. O Exorcista é um reflexo desta sociedade, batendo de frente com imagens chocantes e obscenas.

Dentre a definição de arte podemos dizer que é um reflexo do ser humano, e muitas vezes representa a sua condição social e a essência de ser pensante, tem o objetivo de estimular o interesse de consciência em um ou mais espectadores. O Exorcista então se destaca por ser uma obra de arte que estimula o interesse, o pensamento crítico, da qual você leva para o filme parte de sua vida e, além disso, faz o espectador questionar sua própria fé. Para ilustrar isto, assista ao filme mais uma vez, e reflita sobre a sua conclusão, é satisfatória ou não? A maneira que o espectador compreende o final é um reflexo dele próprio, se for uma pessoa pessimista, acreditará que o mundo é um lugar maligno, onde o mal pode atingir uma criança inocente e corrompê-la para satisfazer seus caprichos, mas se for um espectador otimista, verá que apesar de todas as adversidades o bem vence no final, e para reforçar isto o produtor William Peter Blatty acrescentou alguns minutos à conclusão no DVD lançado em 2000, A Versão Que Você Nunca Viu, na qual há o início de uma amizade entre Padre Dyer e o Ten. Kinderman baseando sua relação na paixão de ambos pelo cinema.

Veja o trailer: