Nessa semana acontece mais uma edição da San Diego Comic Con, o principal evento internacional de cultura pop. Apesar da programação mais focada nos anúncios de grandes estúdios de cinema e televisão, não é exagero pensar que os quadrinhos tem relevância no evento. Pelo menos como fonte de inspiração, já que muitos produtos audiovisuais envolvem obras inspiradas em HQs.
Claro que essa ligação não é total. Ainda que painéis de Game of Thrones e Exterminador do Futuro chamem a atenção, os painéis da Marvel Studios e das séries de heróis da DC Comics têm um peso paralelo ou maior. Os quadrinhos talvez não despertem o interesse de multidões, mas eles estão no DNA de obras populares com o grande público.
Refletindo em tal configuração e no que a San Diego Comic Con representa, é interessante pensar a forma como muitas pessoas ainda pensam nos quadrinhos: histórias de super-heróis. Isso não é necessariamente um problema, basta pensarmos nas obras de nomes como Alan Moore e Chris Claremont, para citar somente dois nomes potentes que trabalharam nessa indústria, ainda que um seja mais experimental e outro mais linear. No entanto, muitas vezes nem essas modulações são levadas em consideração e a sombra dos super-heróis paira sobre os quadrinhos como uma força limitadora para quem não conhece um pouco mais dessa arte.
Dito isto, iniciamos a apresentação do especial Requadro cinematográfico já indicando que um dos nossos objetivos é justamente demonstrar que o universo das HQ’s vai muito além do mundo dos heróis. A partir de uma relação intensa com obras cinematográficas, debateremos a versatilidade e a força da nona arte.
Quadrinhos e Cinema: uma ligação rica e complexa
A relação entre quadrinhos e cinema é longa, já que as duas artes têm origens históricas paralelas, iniciando no século XIX e se desenvolvendo a partir do século XX. A influência mais popular dasHQ’s se dá nas adaptações cinematográficas das histórias de super-heróis. Contudo, há vários quadrinhos não ligados a esse universo que também inspiraram ótimos filmes.
Deixando de lado s adaptações diretas de quadrinhos realizadas no cinema, e focando na potencialidade dos recursos próprios de cada arte, iniciaremos um especial que tem como proposta abordar um quadrinho e um filme com semelhanças temáticas e/ou formais. O jogo é livre e está mais ligado aos sentimentos que surgem durante a experiência do leitor/espectador.
Uma pergunta básica que nos guia é a seguinte: ‘Porque me lembrei desse filme ao ler este quadrinho?’ A partir de tal questionamento, apresentaremos duas resenhas com avaliações críticas e informações contextuais sobre cada obra.
Nos textos do especial identificaremos como elementos característicos de cada linguagem agem sobre o público, guiando a sua atenção ou despertando alguma emoção. Iremos analisar, por exemplo, porque um enquadramento, seja em um quadrinho ou em um filme, organizou o conteúdo dentro da imagem de determinada maneira: qual significado ou sentimento que essa escolha incita no leitor/espectador?
A montagem na sétima e na nona arte
Quando se comenta a proximidade formal entre HQ’s e cinema, geralmente se pensa em alguns quadrinistas importantes que desenvolveram na nona arte uma decupagem considerada mais ágil e cinematográfica. Will Eisner, Frank Miller e Osamu Tezuka são mestres que conseguiram dinamizar os quadrinhos, apresentando angulações variadas com requadros diferentes dos formatos quadrado e padrão, atingindo alta dramaticidade.
Contudo, não é tanto essa relação que buscaremos desenvolver em nosso especial. Primeiro porque a noção de “cinematográfico” parece um pouco simplificadora, ainda que seja necessária para delinear o estilo inovador de quadrinistas com personalidade. Todavia, vale notar que o cinema não se forma somente a partir de uma montagem ágil, que intercale fluidamente diferentes planos.
Mesmo que a montagem analítica padrão ainda seja a pedra de toque do cinema tradicional, há várias formas de se fazer filmes que não sigam concepções convencionais. Algumas cinematografias, inclusive, recusam uma montagem que corta o espaço em várias imagens – obras de Angeloupolus, Mizoguhi ou Tarkovski são ótimos exemplos de um cinema que preza mais pela unidade do espaço. Além do mais, existem diferenças cruciais nas duas artes que, por mais que se tente emular certos efeitos, nunca serão anuladas. Vamos comentar a seguir algumas delas.
Quadrinhos e cinema: diferenças na forma de consumir
Ambas as artes se baseiam, inicialmente, na ideia de sequência, já que uma obra só se torna um filme ou uma história em quadrinhos devido à organização de várias imagens em sequência. Entretanto, como comenta Márcia Cappelani, “os quadrinhos passam uma mensagem ao posicionar quadro a quadro uma determinada situação. Já na tela grande, a exibição também é feita através de imagens fixas e sequenciais, mas cada ação, por mais simples que seja, necessita de uma centena de fotogramas para ser representada”.
Ou seja, o leitor de quadrinhos é levado a completar ou imaginar o que acontece entre as imagens, delineando assim os acontecimentos do enredo. Já no cinema, o enredo “não depende apenas de um processo de conexão do espectador para ser entendido. Cada fotograma representa a parte ínfima de uma ação”.
Além do mais, as experiências do público nas duas linguagens são distintas, como bem explicou o cineasta e fã de quadrinhos, Luc Besson, em entrevista publicada no primeiro álbum brasileiro de Valerian (SESI-SP). “Quando terminamos a página da direita [de uma Hq], damos uma última olhada na página da esquerda, antes de passar para a próxima. O leitor pode se deleitar com imagens e textos, pode saborear plenamente uma última vez antes de virar a página. No cinema, o espectador tem um relógio fazendo tique-taque durante duas horas e ele não pode fazê-lo parar”, explicar o diretor francês.
Apresentamos estas breves problematizações para indicar que em nosso especial, não buscamos, necessariamente, quadrinhos cinematográficos ou filmes quadrinísticos. O principal objetivo é analisar como os recursos próprios de cada arte são utilizados para produzir um significado ou um sentimento.
O que vem por aí
Tendo como elemento em comum algum tema ou semelhança formal, as análises dos filmes e dos quadrinhos poderão jogar luz sobre a potencialidade de cada arte justamente devido a esse ponto em comum inicial. Dessa forma, vale notar que a associação que realizaremos vai desde relações temáticas padrões, pensando em obras sobre vizinhanças em ambientes urbanos, por exemplo, até associações mais formais, como obras influenciadas por um gênero, como o noir, ou até um cineasta (já pensou em um quadrinho influenciado pelo mestre Ozu?). Apresentado o especial, não percam a nossa próxima postagem! Uma dica abaixo!
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