Nos road movies, geralmente os protagonistas passam por uma grande viagem para chegar a alguma espécie de revelação ou descoberta no final. Se a família entra nesse processo, esses laços afetivos tornam a experiência mais intensa, com mais vozes e dores extravasadas ao longo da estrada.
Neste retorno do Requadro, abordamos um quadrinho e um filme sobre viagens em família. As duas obras têm propostas bem distintas: uma focada na fragmentação da narrativa, cabendo mais ao espectador entender os sentimentos dos integrantes de uma família argentina; e a outra proposta consiste em uma narrativa coesa, com personalidades e relações familiares apresentadas quase didaticamente ao público, ainda que de forma singela, em uma espécie de simplicidade arduamente construída. Ou seja, em uma representação, o caos; em outra, a harmonia. Ainda assim, nas duas narrativas se percebe que revelar uma grande descoberta não é tão importante. O essencial é fortalecer algo que já existia anteriormente, seja mágoas, alegrias ou decepções. E ainda que o público não descubra direito como esses sentimentos surgiram, sabemos, no final, que eles estão mais fortes do que nunca.
O FILME: FAMÍLIA RODANTE
A última imagem do filme argentino “Família rodante” (2004), de Pablo Trapero, é do rosto da idosa matriarca Emilia, sentada nos cumes de Missões, sua província natal que não visitava há anos. No início do filme, ela recebeu uma ligação de uma sobrinha a convidando para ser madrinha de seu casamento. Com 12 integrantes de sua família em um pequeno veículo, unindo quatro gerações distintas, ela chega à cidade após uma árdua viagem. Mas eu acredito que o seu olhar final para a natureza não exprime algo concreto.
Elevação, inspiração ou aprendizado? Não, nada disso é claramente expresso naquele olhar. Há um mistério claro, mas é um mistério que não se quer resolver, que não quer se limitar em explicações didáticas ou trilhas sonoras profundas. Tal crueza não significa frieza, mas tampouco o espectador sentirá o calor da identificação, tampouco ele terá a sensação de que conhece todos os sentimentos da matriarca.
Essa “insegurança” se estende para todos os personagens do filme. Consequentemente, o impacto fica em uma corda bamba, já que o público não tem a muleta de grandes monólogos ou de brigas didaticamente organizadas. Mas é em tal risco que o filme encontra sua força. Diante do ritmo fragmentado, “Família andante” brilha em momentos rápidos, pontuais, cabendo ao espectador conseguir se apegar a esses lampejos de autenticidade, nos poucos segundos em que eles “acontecem”. Contudo, com essa fragmentação, os tortos (e realistas) laços familiares daquele grupo ficam mais claros em toda sua hipocrisia ou afetividade, como se eles ficassem mais fixos apesar de seus corpos estarem em intenso movimento. É difícil descrever, mas está ali.
A viagem retratada não organiza os fragmentos dessa família. Não se trata de “Pequena Miss Sunshine” (2006), no qual o desequilíbrio familiar é linearmente organizado para o espectador. Em “Família andante” o discurso é outro. Não é tanto um experimento – o espectador não vai se perder -, porém os vários conflitos vividos não são largamente desenvolvidos ou resolvidos. Essa incompletude faz parte da nossa vida. O filme se torna realista ao tentar preservar essa perdição inerente ao nosso cotidiano.
Para preservar tal realismo, os personagens não são desenvolvidos de maneira convencional. No filme de Pablo, só conhecemos a superfície daqueles indivíduos, os lapsos de várias existências, e não personalidades sólidas. No estilo visual do filme, essa proposta também é preservada. Basta pensarmos nos vários momentos em que a câmera está relativamente distante de alguns aposentos, como as casas e cozinhas no início e no final do filme, registrando os diálogos de maneira distante, enquadrando os enquadramentos naturais de portas e janelas.
A câmera distante de Pablo Trapero em “Família Rodante”
É óbvio que a câmera se aproxima dos rostos em vários momentos, mas essa distância momentânea que ela toma não parece gratuita. É como se enfatizasse que o objetivo ali não é entrar nos recônditos da mentes dos personagens, mas simplesmente registrar, ainda que alguns desses registros possam não ter um peso dramático. Uma mesa de jantar, por exemplo, aqui serve mais para se comer e jogar conversas soltas do que para discussões articuladas.
Devido a essa proposta, o foco é mais na ação dos personagens, no que eles estão fazendo, e não tanto no que eles falam. Uma traição é revelada pelos beijos entre os dois casados, e não por um comentário. Mas as atitudes dos personagens também jogam luz sobre outros aspectos. O pai motorista, preocupado e atarefado com o carro, quase não fica próximo da sua esposa, que tem uma relação com outra pessoa.
A crise, quando explode, resulta em discussões intensas e pouco articuladas, sem grandes revelações. Mas, ainda assim, a câmera de Pablo Trapero consegue acompanhar esses momentos, registrando momentos pontuais significativos que convidam fortemente o espectador a perceber uma vida para além daqueles segundos, significados para além daqueles registros. E tudo isso sem perder o tom quase documental do estilo de filmar. O melodrama perde espaço para um exagero de outro ordem; é um exagero realista.
Vale pontuar que este aspecto documental é uma construção, mas essa construção busca claramente um estilo mais “cru”, mais distanciado. No entanto, ainda assim, essa “frieza” da câmera não deixa de mostrar composições sofisticadas. Falo principalmente das imagens distantes, com diferentes ações acontecendo ao mesmo tempo, em planos quase teatrais. Essas cenas são paradoxais pois, mesmo que elas sejam marcadas por sentimentos intensos, a câmera se recusa a se aproximar. Nos exemplos abaixo, há a saída do homem traidor, ao fundo da imagem, enquanto a esposa chora com a filha na dianteira, com Emilia no meio, e, no outro exemplo, Emilia acolhe a filha enquanto outra mulher espera no banheiro. Sem se aproximar dessas pessoas, a câmera alcança um outro tipo de força ao mostrar como elas, e não somente os seus rostos, exprimem diferentes verdades, seja quando estão fragéis ou quando uma é porto-seguro da outra.
A ausência dos homens nesses exemplos não é coincidência. No filme, eles geralmente são figuras atabalhoadas que não conseguem corresponder aos desejos das mulheres, sejam elas mais jovens ou adultas. Não que elas ganhem dimensões mais complexas, mas pelo menos fica claro que conhecemos somente parcelas de suas personalidades, com suas crises não as definindo inteiramente.
A matriarca viúva é chave importante para o filme. A sua viuvez já revela um pouco a fraqueza dos homens naquela família. E a sua personalidade também demonstra um caráter forte que sabe se impor. Não conhecemos quase nada da sua vida passada. Ainda que idosa, a sua representação no filme é direcionada para o presente e o futuro. A experiência e a força estão nos sulcos de seu rosto, ou no tom cansativo ainda que estridente da sua voz. Emilia não consegue solucionar o caos da sua família, mas tampouco se importa com isso, o objetivo é chegar no destino final. Ela não se preocupa mais em encontrar soluções. As relações difíceis de suas filhas e netas podem ecoar um pouco o seu passado, mas nada é revelado. Na verdade, fica mais a vontade de que as suas filhas e netas ecoem a altivez daquela matriarca.
Essas leituras são interpretações de retalhos, e não descrições de fatos dramáticos. No final, como já comentei, o rosto da matriarca é misterioso, pois não está nem triste e nem alegre, mesmo que aparentemente satisfeito, ainda que não saibamos o porquê. Junto a esse mistério, se reúne os vários outros que estão ao seu redor, nas trajetórias não finalizadas de sua família.
O QUADRINHO: VERÕES FELIZES
Tudo o que há de fragmentado em Família rodante é coesão e unidade nos dois primeiros volumes de Verões Felizes. Nessas obras, não há um quadro “solto”. Todos têm continuidade em algum momento futuro da leitura. Duas férias de verão, uma em 1973, na primeiro edição, “Rumo ao sul”, e outra em 1969, na segunda, “A calanque”, são retratadas com artes deslumbrantes de Jordi Lafebre e roteiro sensível de Zidrou.
Os dois primeiros volumes de “Verões Felizes”
Em Rumo ao sul, a família franco-belga Faldérault, composta pelo quadrinista Pierre, sua esposa Madô, e quatro crianças, partem ao sul para um mês de férias. Já em A calanque, a viagem ocorre quatro anos antes, com os Faldérault e somente três crianças (uma ainda iria nascer) viajando e passando um tempo em uma Calanque após a sugestão de um senhor francês.
Apesar dos dois volumes retratarem férias familiares, os objetivos das duas representações são diferentes: nos anos 1970, a viagem é uma tentativa de apagar as crises de um casamento, com o próprio quadrinho demorando para apresentar esse conflito, como se a sua narrativa estivesse em consonância com os propósitos do casal protagonista. Já em 1969, a viagem é puro deslumbramento e felicidade; as sombras do passado são quase inexistentes, seja ele triste ou alegre; há somente presente e futuro … Na verdade, só presente, sem passado ou futuro.
Com essas propostas distintas, o segundo volume de Verões Felizes me causou menos impacto, pelo menos em relação aos possíveis significados que cria. O elogio a uma vida espontânea e não tão urbana é bem forte nesse quadrinho, mas ele não cria nada além dessa beatitude. Isto não ocorre no primeiro volume, no qual também são abordadas algumas angústias e infelicidades familiares. Consequentemente, a busca por momentos profundos, com “sabedorias simples”, cansa um pouco mais na viagem de 1969. Nela, os pequenos grandes momentos emocionantes da vida cotidiana passam um pouco da dose.
No entanto, justamente por esse volume ser o segundo, nós lemos essa felicidade já sabendo como será o seu futuro, pelo menos o futuro até 1974. Assim, enquanto os personagens vislumbram novas esperanças (um novo emprego, um novo quadrinho etc), para nós algumas delas já nascem mortas. Isto causa uma melancolia na mente, não tanto por causa de algum quadro lacrimejante, mas principalmente pelas informações que leitor sabe de antemão.
No geral, o objetivo das duas representações é causar emoção no leitor ao mostrar as tristezas, alegrias e descobertas de uma família cativante. Nesse sentido, a construção da personalidade de cada personagem é precisa. Brincadeiras, implicâncias e pequenos gestos já conseguem transmitir, em poucas páginas, em poucos quadros, as principais características de todos personagens.
Devido a esse domínio narrativo certeiro, é tocante perceber o quão complexa é aquela família simples, principalmente porque essa complexidade parece autêntica e não a repetição de estereótipos. Ainda que alguns padrões familiares apareçam, são os detalhes – como o amigo imaginário de um filho, ou a forma como um bebê descreve sem pudor como o seu irmão “foi criado” -, que dão uma vida própria à esses personagens.
Consequentemente, os Faldérault podem parecer bem próximos da gente, seja porque lembramos de algum familiar ou porque eles podem facilmente ser nossos vizinhos. Na verdade, nós temos vontade de ficar próximos dessa família, pois todos ali têm um apreço claro pela aventura e pela imaginação; dimensões estas que alguns pensam ser exclusivas de jovens aventureiros, mas que aqui é não para de transbordar em crianças, adultos e idosos.
No entanto, esse encanto harmonioso me impactou somente nos primeiros momentos de minhas leituras. Posteriormente, algo acre se juntou ao doce. Não me refiro às brigas, mas à estrutura atrás delas. Em “Verões Felizes – Rumo ao sul”, a representação de Madô, a esposa do protagonista, se situa em dois aspectos: frustração ou encantamento. A frustração se refere, de maneira mais clara, à sua infelicidade com os rumos da sua vida profissional, mas também na maneira calma como ela descreve que ficou distante dos sonhos de infância. Já o aspecto encantador está na forma como a sua beleza é o foco de vários quadros e páginas, seja quando está nadando ou quando está chorando, beleza esta que muitas vezes é observada pelo personagem masculino.
O marido Pierre não está nesse lugar de encantamento. Ele é um homem de feições normais, chamando mais atenção pela sua personalidade. Ainda que enfrente dificuldades como desenhista, ele está em busca de seus sonhos, e por causa dessas dificuldades artísticas é que ele atrasa as viagens familiares. A mulher, espera. Ele dirige o carro. Ela sabe dirigir, mas nunca tirou a carteira, ainda que pegue no volante em um momento de aventura.
O homem está principalmente no lugar da “ação”, do ser que age. A mulher é parceira desses momentos de ação, mas em muitos momentos ela praticamente reage. O ato de chorar, por exemplo, é uma reação à algo que acontece, e Madô é a personagem que mais chora. Em “Rumo ao sul”, a primeira lágrima de Pierre ocorre na página 32. Antes, Madô já havia chorado três vezes. É algo bem pontual e não tão exagerado, mas é claro que acentuar o aspecto emotivo da personagem feminina é uma convenção de gênero que pode ser questionada.
Várias questões surgem. Por que o lado aventureiro não está presente na dimensão profissional de Madô? Se a sua profissão não tem esse lado, por que o seu aspecto profissional é tão amenizado, enquanto o do Pierre é o grande foco? Não acredito que ela esteja presa à estereótipos. Na verdade, há vários momentos em que o quadrinho aborda diretamente as frustrações da mulher. E isto é um diferencial.
Mas me incomoda justamente quando essas dimensões estão escondidas, principalmente nos inícios dos volumes, pois, devido à arte fascinante dos quadrinhos, determinados padrões que precisam ser questionados podem parecer “naturais” e não padrões normatizados. Para o leitor atento, isto não deve acontecer, principalmente porque essas “desigualdades” são debatidas, como ocorre no primeiro volume (mas não no segundo).
A família de “Família rodante” é representada de maneira tão fragmentada que o problema é mais a dificuldade de se conectar com os personagens do que a repetição de uma estrutura, pois a própria fragmentação do filme também estilhaça estruturas de gênero. Ao seguir uma narrativa mais clássica, mais concatenada, “Verões Felizes” trabalha com estruturas que são importantes para intensificar a identificação do leitor com os personagens; estruturas culturais, estéticas, de linguagem e etc.
O problema é quando essas estruturas repetem, ainda que “inconscientemente”(talvez), estereótipos de gênero que realmente estão normatizados na nossa sociedade. Verões Felizes não repete totalmente as normas dessa estrutura, mas o quadrinho caminha dentro dela, o que pode ser perigoso.
Essas normas, de alguma forma, refletem algumas relações na sociedade. Ou seja, a frustração de Madô pode, realmente, ressoar a frustração de muitas mães jovens. Felizmente, a sua personalidade é tão viva que ela fragiliza as barreiras que colocam as mães somente no ambiente doméstico. Ainda que não esteja no emprego dos sonhos, que não seja uma “artista profissional”, ela ainda não se resume à essas incompletudes. Tem uma alma maior.
E é por causa de tal força que fica a vontade de conhecer mais essa vida, para além das relações dela com a família. Não que não seja fascinante ver as dificuldades de um quadrinista europeu nos anos 1970. No entanto, colocar o mesmo peso nas dificuldade de Madô, seja na loja de sapatos onde ela trabalha ou ainda na relação com amigos de outra dimensão (o final do primeiro volume é fascinante), tornaria esses verões felizes mais potentes, algo mais interessante do que a própria felicidade.
Confira abaixo o trailer do filme desse requadro:
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