Por Felippe Gofferman
Os primeiros deuses, segundo a mitologia japonesa, foram os responsáveis pela criação de toda a terra do nosso planeta. Esses deuses tinham proporções titânicas e viviam no céu, embora tivessem frequente contato com o mar e posteriormente com o povo por eles criado. Uma interessante mistura de evolucionismo, poesia e misticismo forma a base das lendas da criação japonesa descrita em livros como Kujiki e Yamatobumi.
O monstro mais conhecido do cinema surgiu de uma mistura de mitologia e dor, a qual quase todas as sequências japonesas e versões americanas não se ativeram e, por isso, merecem ser analisadas separadamente, como fruto da ambição da indústria cinematográfica que são.
Gojira (1954) é uma obra-prima para os fãs de Kaijus (monstros gigantes) e de todos os subgêneros que se consolidaram ao seu redor, como animes e tokusatsus.
O preconceito ocidental para com a enorme criatura é derivado das péssimas adaptações Hollywoodianas, mas precisamos esquecer tais adaptações para apreciarmos essa obra cinematográfica única.
A contextualização da criatura gigante é dolorosa para o povo japonês. O pós-guerra foi extremamente traumático para as famílias da terra do sol nascente, que teve que se reconstruir a partir dos destroços ao qual foi deixada mediante as bombas atômicas que assolaram sua população por anos e que ainda hoje possuem resquícios. A radiação veio como um prolongamento do sofrimento e feriu, sobretudo, a dignidade do país, que viu em seu cinema uma forma de manter viva sua cultura e propagar a força de seu povo.
Os anos que se seguiram ao final da Segunda Guerra Mundial foram de uma intensa produção cinematográfica regada a injeções de metanfetamina e noites sem dormir para levar aos cinemas dezenas de grandes filmes.
O início do longa é misterioso e tem um ritmo peculiar, evitando mostrar a criatura de imediato. A trama se desenrola indicando um ataque a um barco, remetendo às bombas e testes nucleares do exército norte-americano perto da costa japonesa. O terror provocado pelas armas de destruição em massa se faz presente a todo o momento, embora de forma transfigurada para a imagem imponente da criatura.
A origem de Gojira é exatamente a radiação, que a própria criatura exala e utiliza como arma. Os raios que saem da boca do monstro são inteligentemente apresentados de cima para baixo, devido à sua altura, como se o ataque viesse do céu. O surgimento a partir do oceano também é utilizado como referência aos Estados Unidos e os outros países aliados, que representavam um inimigo de além-mar.
O Gojira, ao mesmo tempo em que é tratado como uma lenda pelos anciões, é uma obvia ameaça a sociedade, o que causa uma corrida bélica para destruir a criatura, que é representada como um mal bestial sem propósito e que destrói tudo que vê pela frente.
Curiosamente, um dos personagens principais, o zoólogo Kyohei Yamane (Takashi Shimura) propõe, sem sucesso, o estudo da criatura ao invés de sua eliminação a fim de entender os efeitos da radiação e os motivos de ter sobrevivido.
Todo esse pano de fundo mistura crítica aos Yankes, exaltação da união do povo japonês, sacrifício (um haraquiri repaginado) e uma trama densa e certeira resultando em uma belíssima história.
O gigante Gojira, acima de tudo, é a natureza se manifestando. É o planeta respondendo aos abusos do ser humano. O monstro não é o mal puro que se imaginava, mas sim uma força brutal e incontrolável que busca seu espaço.
Tecnicamente o filme dirigido por Ishirô Honda é uma obra magistral, principalmente se considerarmos o ano e a situação em que o Japão vivia. A trilha sonora de Akira Ifukube acentua o suspense e o terror, enquanto a fotografia de Masao Tamai pesa a mão no uso das sombras para aprofundar os personagens e obviamente para mascarar as cenas com a criatura de forma a lhe deixar mais verossímil e ameaçadora.
A criação da criatura em si se dividiu entre algumas técnicas. As cenas de sobreposição lembram alguns efeitos de George Méliès, embora haja um maior refinamento pelas novas tecnologias, enquanto as que utilizam stop motion e miniaturas são um pouco mais chamativas e são responsáveis por capotamentos de carros, destruição de casas e explosões de barcos.
A utilização de um ator fantasiado em meio a uma cidade maquete foi fundamental para que os tokusatsus se desenvolvessem e toda a safra da era de ouro da televisão japonesa se firmasse com baixos custos.
O roteiro trata da personificação do medo na criatura gigante, representante da guerra nuclear, mas foca no povo para mostrar seus conflitos e superação frente à destruição, o que junto da técnica apurada e revolucionária resultou em um grande filme, que nos permite hoje lembrar de uma infância com Jaspion, Ultraman, Powers Rangers, Kaimen Rider, e uma série de outros produtos para receber com nostalgia um Círculo de Fogo (2013) de Guillermo Del Toro e tantos outros personagens icônicos, todos filhos do gigante Gojira.
Você não sabia que…
– Gojira não é um dinossauro. A palavra “gojira” é uma amálgama de “Gorira” e “Kujira”, respectivamente “gorila” e “baleia”. Um produtor optou pelo visual reptiliano depois de assistir O Monstro do Mar (1953).
– Na bela adaptação Godzilla (2014), de Gareth Edwards, segundo informações de bastidores, o ator japonês Ken Watanabe se recusou a falar o nome da criatura com a pronúncia em inglês, resultando num característico “Gojira!”.
– Gojira está eternizado com uma estrela na calçada da fama de Hollywood.