Por Felipe Gofferman
O fim da segunda guerra mundial trouxe à tona cicatrizes profundas no Japão e expôs as atrocidades a que o ser humano é capaz de se sujeitar para atingir seus objetivos. O povo japonês, após ouvir a lendária transmissão de rádio na qual o Imperador Hirohito anunciou o cessar fogo, foi lançado em um período de reflexão fundamental para construção de um novo país.
A ocupação do Japão pelas forças do Estados Unidos sufocou a indústria cinematográfica do país em relação as análises mais duras sobre o período. Os sete anos que sucederam o fim da Segunda Guerra foram marcados por uma censura às manifestações críticas sobre o período de guerra.
A segunda metade da década de 1950, com o fim da ocupação, traz os primeiros desabafos cinematográficos às telas do Japão. Clássicos como A Harpa Birmana (1956) e Fogo na Planície (1959) representavam uma visão anti-guerra, mostravam seus horrores e refletiam o pensamento de uma geração que buscava entender o próprio passado.
Masaki Kobayashi, que se transformaria em um dos grandes diretores do cinema japonês, serviu no exército e desenvolveu uma forte veia de contestação ao status quo que viria a se consolidar como uma assinatura de sua filmografia.
Kabe atsuki heya (1956) e Kuroi kawa (1957) são duas grandes obras dirigidas por Kobayashi com abordagens sombrias e que tinham como objeto de estudo o ser humano, deixando de lado o macrocosmo que envolve disputas territoriais ou embates entre países, mas foi em 1959 que o diretor fez sua obra definitiva sobre a guerra.
Guerra e Humanidade
O épico de Masaki Kobayashi, baseado no romance de Jumpei Gomikawa, conta a história de Kaji (Tatsuya Nakadai), um jovem pacifista que acaba vendo todos seus ideais postos em cheque ao embarcar numa intensa jornada em meio a Segunda Guerra. O filme é dividido em 3 partes, tendo quase 10 de horas de duração.
O primeiro longa mostra Kaji sendo enviado com Michiko (Michiyo Aratama), sua esposa, para uma mina de ferro onde tenta estabelecer um sistema de trabalho mais humano e produtivo enquanto bate de frente com a força opressora dos capatazes.
Kaji, ainda muito inocente, tenta pôr em prática os ideais marxistas que admira, mas entra em choque com uma realidade dura de um sistema montado para extrair o máximo possível dos trabalhadores sem levar em conta as condições mínimas para sua sobrevivência.
A mina de ferro é o primeiro ponto da escalada do desapontamento com o ser humano encarado pelo protagonista. O ambiente confuso e a hierarquia torta controlada por pessoas sem preparo demonstram a que ponto o ser humano pode chegar em busca de poder quando deixa de lado o coletivo para pensar apenas em si.
A segunda parte da jornada de Kaji redimensiona a falta de humanidade ao transportar o protagonista para o campo de batalha. O personagem, após sair de um intrincado sistema de violência e trabalho escravo, se depara com uma pirâmide hierárquica mais organizada que da mina, mas tão violenta quanto.
O exército japonês, assim como o campo de trabalho, se caracterizava por um misto de abuso de poder e ultranacionalismo que punia o florescimento de ideologias contrarias ao pensamento imperialista/militarista. Kaji se via em conflito ao ter que pegar em armas por um ideal totalmente oposto ao seu enquanto tentava não perder sua essência.
O terceiro filme coloca o protagonista como um desertor e depois como prisioneiro de guerra do exército russo. A parta mais sombria da trilogia busca um pouco de cada filme anterior para dar um desfecho a saga de Kaji.
O campo de trabalho do Exército Vermelho traz o personagem para a realidade ao mostrar que acima de qualquer ideologia há sempre o ser humano para corromper e ser corrompido. Kaji, sob o controle de um exército que compartilha de suas ideologias, percebe que não pode alçar a um pedestal nenhuma instituição ao ver abusos semelhantes ao do exército japonês no campo russo. Embora haja pouca bandeira para um lado ou para o outro, Kobayashi indica sua inclinação ao apresentar os oficiais russos lidando com o protagonista de maneira mais humana que os seus compatriotas do exército japonês.
Os três filmes juntos possuem uma gama complexa de críticas, reflexões e revisões históricas. O diretor constrói um relato duro e realista da visão daqueles que viveram o período da segunda guerra mundial.
Kobayashi, sabedor da dificuldade que seria produzir as três partes de seu épico sem perder qualidade em algum momento, buscou no perfeccionismo do diretor de fotografia Yoshio Miyajima um complemento às suas escolhas criativas.
As 10 horas de Guerra e Humanidade obrigaram Miyajima, que tinha certa preferência pela câmera estática, a rever alguns de seus conceitos para deixar o filme mais dinâmico. Apesar do ritmo massacrante da produção, alguns complexos movimentos de câmera têm papel fundamental na construção da história.
Kaji, por diversas vezes, é acompanhado pela câmera em busca de alguma salvação no extracampo, mas é difícil escapar dos males de uma guerra. O uso do tracking lateral funciona como uma representação visual do conflito ideológico do protagonista e antagoniza os lados do quadro, dando a falsa impressão de que há lado certo ou errado para se acreditar.
As rimas visuais construídas por Miyajima e Kobayashi estabelecem uma estética que se repete pelos três filmes, mas os arcos de Kaji se diferem fortemente pela gravidade de seus tons e por uma fotografia cada vez mais densa.
O uso do dia, da noite, do sol e da escuridão merecem um destaque. O primeiro longa trabalha com uma divisão clara entre os momentos do dia ao trabalhar todo o momento da mina sob um forte sol, enquanto as cenas noturnas são reservadas para as intrigas e para relações interpessoais. O primeiro filme lida com um sol mais difuso que funciona como um complicador para o trabalho braçal, sendo um dos culpados pela exaustão dos prisioneiros de guerra ou dos soldados, mas o segundo e o terceiro já trazem uma iluminação mais dura e um sol mais contundente, reforçando a impressão de que os personagens estão à beira da morte por insolação ou desidratação.
As duas últimas partes possuem ainda um trabalho bem mais discursivo de Miyajima. O uso de planos inclinados (ângulo holandês), da iluminação expressionista e dos tracking laterais alegóricos, por exemplo, servem para pontuar alguns dos momentos de maior tensão na jornada de Kaji.
Guerra e Humanidade, no entanto, vai muito além de sua qualidade técnica. Kobayashi desenvolve com maestria uma narrativa que durante as três partes constrói um forte laço entre o protagonista e o espectador. A grande dificuldade que o diretor poderia enfrentar era a falta de empatia gerada por um personagem com uma moral tão ilibada, sem grandes desvios, mas Kobayashi consegue instigar a empatia por Kaji ao dar para Tatsuya Nakadai o espaço necessário para que esse personagem tão inocente se mostrasse aos poucos como um ser humano com ideais reais sendo espancado pela realidade de seu tempo.
O declínio da sociedade ao redor do protagonista afeta diretamente a construção do personagem e, por isso, um dos aspectos mais interessantes do filme certamente é acompanhar o protagonista flutuando entre os ideais socialistas, o existencialismo e tentando manter essa fome de ser bom e correto com aqueles que o cercam sem esperar o mesmo em troca.
Masaki Kobayashi possui muito menos reconhecimento do que merecia. A belíssima filmografia do diretor de certa forma foi ofuscada por uma gama genial de cineastas como Kenji Mizoguchi, Akira Kurosawa e Yasujiro Ozu que pavimentaram o cinema japonês internacionalmente, mas Kobayashi é responsável por obras incríveis e por uma assinatura que se destaca das demais, sendo ainda hoje responsável por influenciar as gerações de cineastas que vieram a seguir.
Guerra e Humanidade é uma obra-prima que reforça a capacidade do cinema de contar a nossa história e refletir sobre os nossos erros. O longa é um exercício impressionante de storytelling e amor ao cinema, ao mesmo tempo que um incontestável tratado sobre o ser humano e seus defeitos.
O box da trilogia Guerra e Humanidade é distribuido no Brasil pela Obras-primas do Cinema e pode ser adquirido AQUI