Nas listas que são publicadas frequentemente por jornais, revistas e sites especializados em cinema dos últimos anos, Sangue Negro (2007) é uma presença constante. O jornal inglês The Guardian, por exemplo, em 2019 ao eleger os 100 Melhores Filmes do Século XXI, colocou a produção em 1º lugar. Na seleção ainda tem A Rede Social (2010), O Lobo de Wall Street (2013) entre outros. Curiosamente, Onde os Fracos Não tem Vez (2007), que concorreu com Sangue Negro e ganhou o Oscar de Melhor Filme, aparece em 86º lugar na lista. Nessa mesma premiação, o ator Daniel Day-Lewis levou a sua segunda estatueta de Melhor Ator, por interpretar o explorador de petróleo Daniel Plainview. Sangue Negro também levou melhor fotografia para Robert Elswit.
Sangue Negro é uma adaptação do romance Oil!, do escritor norte americano Upton Sinclair, publicado em 1927. Porém, segundo o diretor, que também escreveu o roteiro do filme, ele utilizou apenas parte do livro. A principal mudança é que, na obra original, Daniel Plainview é coadjuvante enquanto no longa ele é o personagem principal. A versão literária, é focada no filho do petroleiro, que lá se chama James Arnold Ross Jr. com o apelido de Bunny. O grande embate é que Bunny ao longo da história, se aproxima dos operários do campo de petróleo e da causa socialista, o que provoca conflitos com seu pai.
“No começo, havia bastante do livro. Mas, a cada vez que eu escrevia uma nova cena, algo dele caía fora”, diz Paul Thomas Anderson, em entrevistas a jornalistas no Festival de Berlin em 2008.
O título original do filme, There Will be Blood por sua vez, faz referência à passagem bíblica que relata a criação do universo (Haja luz, ou “There will be light”, em inglês). Isso já é prenuncio do conflito que será tratado no longa. As relações entre religião e coisas materiais para manipular a sociedade.
O ANTI-HERÓI PETROLEIRO E O PROFETA
É estranho pensar que o protagonista Daniel Plainview não é um herói, muito pelo contrário. Na verdade, ele encarna o que tem de pior nas pessoas. Plainview entende como a sociedade funciona e utiliza isso em seu favor. Em certo momento, o próprio diz que seu objetivo de vida é ganhar dinheiro suficiente para construir uma casa e viver isolado de todo mundo.
Suas manobras começam com a utilização de seu filho adotivo H.W. (Dillon Freasier). Depois que o pai do garoto, um dos funcionários de Daniel, morre num acidente durante uma escavação, ele passa a cria-lo e usá-lo como ferramenta para conquistar e manipular seus possíveis clientes. Diz ser dono de uma empresa familiar e introduz a criança como seu sócio. Conta ainda que sua esposa morreu no parto e deixou a ele a missão de cuidar de seu filho. Isso acaba influenciando na decisão das pessoas cujo o protagonista pretende comprar as terras para extração de petróleo. Um de seus concorrentes, Gene Blaize (Dan Swallow) inclusive, faz exatamente essa observação quando os dois se encontram por acaso em uma estação de trem.
“Vocês formam um negócio de família completo. […] Deve ser fácil quando se leva junto uma carinha bonita.” Gene Blaize, concorrente de Daniel Plainview em Sangue Negro
As coisas se complicam quando o petroleiro esbarra com Eli Sunday (Paul Dano), que tem em suas mãos uma arma tão poderosa quanto o dinheiro prometido com a extração de petróleo: a religião. A partir daí surge o verdadeiro embate do filme: ciência versus religião. Ciência porque aliado a esses momentos políticos em que Daniel utiliza seus conhecimentos sobre as fraquezas da sociedade contra a própria, ele ainda domina a ciência de explorar petróleo. Desde a introdução quase que puramente silenciosa do longa (o primeiro diálogo é dito após 11 minutos e 33 segundos) nos é apresentado um personagem solitário e inteligente, que constrói engenhocas para melhorar o trabalho de exploração do sangue negro.
O maior oponente de Daniel é a igreja, encarnada na pele de Eli. A manipulação do profeta vem por meio da religião. Ele constrói a imagem de um enviado de Deus e que irá guiar o seu rebanho para a salvação. Seu antagonista, com seu olho apurado, desconfia o tempo todo que tais palavras e sua performance dentro da igreja são fachada para atingir algo que não está muito claro. As coisas complicam e o filme se torna intenso quando as duas linhas se cruzam. A queda de braço é entre o progresso prometido por Daniel através do petróleo e a salvação da alma através da religião prometida pelo profeta.
SANGUE NEGRO: DUELO DE GIGANTES
O interessante nesse embate é que tudo isso é construído através de imagens e de silêncios. Todo o desenrolar da trama se dá muito mais pelo que é visto do que pelo dito. Um exemplo, que já citei anteriormente, é a apresentação do nosso protagonista. Na primeira cena, vemos o personagem fazer uma escavação sozinho e depois ter que sair do poço com a perna machucada e se arrastar até longe para vender o que conseguiu extrair de lá.
A palavra é utilizada apenas em momentos em que ela é extremamente necessária. Como por exemplo, o primeiro momento de conflito entre Daniel e Eli. Ao tentar comprar a propriedade de Abel Sunday (David Willis), pai de Eli, o petroleiro é interrompido e questionado pelo profeta que se demonstra mais ameaçador que o pai. Que conhece o real valor de sua terra e o que tem debaixo dela. Esse diálogo é crucial para entendermos os acontecimentos que viriam e o desenvolvimentos dos personagens.
LUZ, CÂMERA E SONS
Outro elemento que salta aos olhos, ou melhor, aos ouvidos é a trilha sonora. Como dito, os silêncios nesse filme são muito importantes, quase tanto quanto os seus diálogos. A trilha então aparece somente em momentos em que é extremamente necessária. Na maioria das vezes para marcar passagens de tempo. Como, por exemplo, quando acontece um acidente no poço quando a perfuração chega no petróleo e o gás causa uma explosão que atinge o H.W., filho de Daniel. A trilha aumenta sua intensidade e até sobrepõe os sons dos operários tentando controlar o fogo. Ela dura desde a explosão inicial até o momento em que o incêndio é controlado com uma outra explosão, dessa vez controlada, que faz o fogo extinguir. Aliada a montagem, a música mostra que a operação durou a noite toda e pontua a urgência com que os atos foram feitos.
A trilha foi composta por Jonny Greenwood e muitas vezes é quase impossível identificar quais instrumentos ele utilizou para compô-la. Pode ser de qualquer coisa, até mesmo passar um arco de violino numa guitarra como ele faz nas apresentações no seu grupo de origem, o Radiohead.
A fotografia vencedora do Oscar 2008 é um elemento marcante no longa. Trabalho feito por Robert Elswit que também trabalhou com Paul Thomas Anderson nos seus filmes anteriores Jogada de Risco (1996), Boogie Nights: Prazer sem Limites (1997), Magnólia (1999) e Embriagado de Amor (2002) e o que seria lançado futuramente, Vício Inerente (2014). O único que não participou com o diretor foi em O Mestre (2012).
As imagens de Sangue Negro, para além do figurino, lembram muito os filmes de faroeste. Com planos abertos em que a paisagem é um elemento importante para o desenvolver da história. O cenário árido e sem muita esperança de qualquer plantio ou criação de animais é importante para mostrar o quanto a exploração de petróleo pode ser importante para o desenvolvimento da região.
ATUAÇÕES MEMORÁVEIS
O ator Paul Dano foi a escolha mais acertada para o papel de Eli Sunday. Hoje é quase impossível imaginar outra pessoa no papel, mas ele não foi o primeiro a ser escolhido. Inicialmente, quem iria interpretar o profeta em Sangue Negro seria Kel O’Neill que até chegou a participar da produção e filmar algumas cenas com Daniel Day-Lewis. Porém, depois de duas semanas de filmagens, ele foi despedido. Durante muito tempo, o motivo da saída do ator gerou muita especulação, mas só recentemente ele falou sobre o ocorrido.
Segundo Kel O’Neill, o motivo da saída foi o relacionamento com o diretor Paul Thomas Anderson. Ele garante que não houve desentendimento, mas, desde o processo de pré-produção, os dois não se entendiam muito bem. Até que não teve mais jeito e depois de uma reunião com a produtora JoAnne Sellar e Paul Thomas Anderson, ele foi demitido.
“O cinema é algo tão alquímico que, muitas vezes, certas coisas não conseguem se misturar. Alguns diretores com quem trabalhei tinham uma maneira de me fazer sentir confortável. Por algum motivo, apesar de todos os outros atores que conheci terem um bom relacionamento com Paul, isso simplesmente não aconteceu comigo”, Kel O’Neill, em entrevista ao site da Vulture.
Em contra partida, Daniel Day-Lewis sempre foi a primeira escolha de Anderson. Segundo a produtora JoAnne, caso o ator não aceitasse o papel não haveria filme. “Escrevi o roteiro pensando que, no mundo ideal, [o ator] Daniel Day-Lewis aceitaria o papel.” Daniel, por sua vez, se tornou fã do diretor depois de assistir a Embriagado de Amor. Anos depois eles repetiriam a parceria em Trama Fantasma (2018) que deu mais uma estatueta de melhor ator para Day-Lewis.
E uma das cenas mais intensas e marcantes é justamente a interação entre Eli e Daniel. Em um determinado momento, para conseguir manipular seus clientes, o petroleiro precisa se batizar na igreja do profeta. Cada fala, cada movimento do corpo, troca de olhares e expressões do rosto são importantes para compor a cena e a tornar tão memorável. Além da atuação, a fotografia faz a sua parte com uma luz intensa em forma de cruz que vem de fora e cai sobre os dois. Nem dá pra explicar, só assistir.
SANGUE NEGRO: REPERCUSSÃO MUNDIAL
O último trabalho de Paul Thomas Anderson tinha sido Embriagado de Amor em 2002 e Sangue Negro foi lançado somente em 2008, 6 anos após. “Eu não estava sendo preguiçoso. Foi esse o tempo que levou para escrever o roteiro e reunir o orçamento do filme (cerca de US$ 25 milhões)”, diz em entrevista a jornalistas no Festival de Berlim de 2008.
“Parecia que eu estava ganhando o Oscar. Esta é a lembrança que vai ficar para mim deste Festival de Berlim. E o [diretor do festival] Dieter Kosslick me empurrando para o palco. Foi embaraçoso.” Disse Paul Thomas Anderson, a um grupo de jornalistas após a exibição do filme no Festival de Berlin.
Sangue Negro foi um sucesso na época de seu lançamento. Foi indicado a diversos prêmios, incluindo oito indicações ao Oscar e duas ao Globo de Ouro e aclamado, principalmente pela crítica especializada. Daniel Day-Lewis venceu seu segundo Oscar e seu primeiro Globo de Ouro. E, como dito no início do texto, é presença garantida nas listas dos melhores dos últimos tempos e consagrou Paul Thomas Anderson como um cineasta a ser acompanhado.
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