Nos meus caminhos diários, entre casa, trabalho e estudos, o fone de ouvido sempre é minha companhia. Acho que por ser amante do cinema gosto que a vida tenha uma trilha sonora. É quase um vídeo clipe na vida real. Ainda mais quando você está dentro do ônibus, começa a chover e você olha pela janela. Se tiver a música certa, as coisas parecem até estar em câmera lenta.
Além disso, também costumo a sofrer de algumas “paixonites diárias”. Momentos únicos em que tudo parece se encaixar. Geralmente estou no ônibus. Ele para em algum ponto, entra uma moça. De onde eu estou, a vejo subir as escadas e surgir aos poucos. É um movimento quase cinematográfico. O cabelo amarrado em coque, mochila nas costas e roupas leves. Quando ela para na roleta, joga sua mochila para frente e paga a passagem. Ela tem um botton do Yellow Submarine. O cupido me acerta. Ela gira a roleta e senta a algumas poltronas a frente. A música continua em meus fones e a vontade de puxar uma conversa só aumenta. Pena que meu ponto está próximo e não posso me atrasar indo mais distante no ônibus. Como diz Lulu Santos, talvez eu seja o último romântico.
Achava que era só eu que sofria dessas “paixonites”, até que vi isso em forma de video clipe em De Passagem, do cantor Cícero. Pensei: poxa, esse cara tava olhando dentro da minha cabeça, só pode ser. Ele exprime exatamente esse sentimento de paixão passageira. Se não conhece, confere aí.
O vídeo inicia mostrando primeiro o cenário em que toda a história irá se passar: a cidade grande. Muito cinza, prédios gigantes, trânsito pesado e uma fumaça quase da mesma cor dos prédios, que inunda tudo. Temos uma dimensão de algo, não só físico, mas um sistema que é muito maior do que qualquer pessoa. Em meio a essa paisagem sufocante, surge um alívio na forma de uma moça.
É interessante o movimento que o clipe faz do macro para um ponto específico da cidade. De uma visão geral, para um prédio, transito, carros e uma pedestre através de imagens. O ritmo da montagem e a duração dos planos é ditada pela própria música. Primeiro localiza onde estamos para depois apresentar uma situação. É interessante que a figura humana surja primeiro por detrás de um vidro, como um motorista de ônibus. Talvez um primeiro indício que tem vestígios de humanidade por trás de todo esse aparato. A primeira pessoa que vemos fora de forma clara, e que irá se permear por todo o vídeo, é a musa do clipe.
Na onda leve da brisa do dia
na onda longa do trem
na brisa leve da vida do dia
eu encontrei o meu bemNão era fogo nem alegoria
não era fuga também
não era medo da melancolia
era o dia de bem
A partir daí, essa moça vai andar pelos mais diferentes lugares. Mais passantes vão surgindo e transforma o cenário em algo mais orgânico. Em meio à esse mar de gente, que circula entre prédios cinzas, surge ela que colore e muda seu dia. Num trecho da música, Cícero canta:
O jeito dela levando meu tento
Iluminura no breu
O mundo dela lançando doçura
Na amargura do meu
Essa veia mecânica e ao mesmo tempo pulsante, é intensificada por uma espécie de bumbo de bateria mais baixo, que simula tanto o bater de um coração quanto um fábrica que trabalha continuamente no mesmo ritmo.
Acho interessante o contra-ponto entre a cidade que se movimenta o tempo todo e o alívio da moça. Ninguém mais da cidade é focado ou mostrado com detalhe. É como se Cícero e nós tivéssemos olhos apenas para ela. O clipe então, mostra a moça em forma fragmentadas. Como se a atração por alguém vem pelos seus detalhes, que são mostrados em cena justamente em planos detalhes do corpo da jovem. Planos esses que são mais românticos do que sexuais. A nuca e a parte de trás do pescoço, um cabelo que pende ao lado da bochecha e que nos tenta a coloca-lo para trás da orelha, além de sorrisos bobos (sim, sou apaixonado com essa moça). Apenas detalhes que marcaram o cantor, ou o diretor do filme, tanto quanto a moça do botton que falei acima. Na música Cícero canta:
A calma dela mudando meu rumo
As curvas dela também
Na estação do acaso
Eu encontrei o meu bem
Em meio à multidões e essa mulher, o cantor é visto como parte do mesmo cenário em que ela se insere. O caminhar do clipe nos faz crer que em algum momento eles terão seus caminhos cruzados. Porém, não. Parece que o que Cícero canta foi sobre ter encontrado uma paixonite uma vez, nos caminhos diários e nunca mais viu. Porém, ela ainda se manteve viva em seus pensamentos. Acredito ser essa a razão de termos poucos vislumbres do rosto dela. Quando acontece esse tipo de situação comigo, é difícil lembrar com clareza como era o rosto da pessoa. Alguns detalhes são inesquecíveis (como o botton que citei e realmente aconteceu comigo), mas é impossível ter uma visão 100% do todo. Como ele canta ao final:
E tudo foi desbotando até desaparecer
Quando pensei em escrever um texto sobre esse clipe, imaginava que sairia um texto gigante decupando o clipe, mas foi o oposto disso. Percebi que foi aplicado formas simples de se contar uma história. Forma essa que conseguiu expressar muito bem o que estava nas entrelinhas da música. Como dizia uma professora minha da faculdade de cinema: “Prefira Fuscas que andam do que Ferraris que não andam”. E, por incrível que pareça, a gente não ouvia na hora de fazer nossos curtas.
Acredito que a boa arte é feita com o coração. Ela é capaz de nos transmitir emoções que são tão particulares de uma pessoa. Nesse caso, tivemos conversões de som e imagem de uma forma complementar.
Depois de assistir a esse clipe virei fã do cara. Já tenho o disco em vinil, que tem uma capa maravilhosa e, aliás, recomendo fortemente a audição (não precisa ser necessariamente em LP), e tenho acompanhado a carreira dele um pouco mais de perto.É um cara muito interessante.
Abaixo coloco uma apresentação sua no programa Cultura Livre, (que já citei no post que fiz sobre o clipe do Tim Bernardes), em que ele fala um pouco sobre o seu trabalho e inspirações.
E você, também é um romântico?