Não haveria melhor momento para falar sobre Wall-E. Se lá em 2008 o longa de 1h43 causou desconforto ao expor o possível desastre para o qual a humanidade caminhava, revê-lo durante uma pandemia mais de dez anos depois é um soco no estômago. Dirigido por Andrew Stanton, roteirista de clássicos da Pixar como Vida de Inseto e Toy Story, o longa tem um tom que pode ser considerado mais “adulto”, afinal, reflete as angústias e tristezas de uma humanidade que precisou deixar a Terra para trás após o planeta sucumbir à voraz exploração da natureza. Vivendo em uma nave gigantesca e com robôs realizando toda e qualquer tarefa possível, nos deparamos com uma população nada mais do que estagnada que mal se lembra de como era a vida “normal” no planeta azul.

O distanciamento dos seres humanos – e sua frieza para com a realidade deixada para trás- é explícita ao nos depararmos com o personagem principal dessa história, o robozinho coletor e compactador de lixo Wall-E. Passando seus dias em meio a um ambiente inóspito, Wall-E é o último robô de seu tipo em funcionamento e ele segue firme em sua tarefa. Com uma rotina própria, que beira ao dia-a-dia de qualquer pessoa, Wall-E é também um colecionador de objetos curiosos que encontra enquanto trabalho. Sua vida monótona muda com a chegada de uma poderosa nave e da sonda EVA, que chega para buscar indícios de que a vida está retornando ao planeta.

Wall-E é memorável por ser tão honesto e por dar humanidade a um ser que, teoricamente, sequer teria sentimentos. Em comparação aos humanos da nave, que não sabem viver sem que um terceiro realize as tarefas mais básicas por eles, Wall-E é o real ser inteligente e sensível. Em sua busca por EVA quando a mesma some dentro da nave após reportar que havia localizado uma planta, o robozinho nos dá uma lição de altruísmo e generosidade. De sua maneira atrapalhada e simples, ele a ensina pouco a pouco sobre o mundo que nem mesmo os próprios humanos se lembram. É emocionante o momento em que eles assistem a um trecho de It Only Takes a Moment, de  Alô, Dolly!, longa de 1969, estrelado por Barbra Streisand e dirigido por Gene Kelly.

O melhor de tudo é que em Wall-E ressoam ecos do cinema mudo. São as músicas que falam pelo “casal”, as expressões faciais (por mais peculiar que seja) e os pequenos gestos. Essa era justamente a intenção de Stanton, estabelecer a comunicação baseando-se em sutilezas. Não à toa essa foi a primeira animação da Pixar a receber seis indicações ao Oscar – e vencendo, claro, a categoria de Melhor Animação – lá em 2009. As mensagens estão nas entrelinhas, distribuídas ao longo das imagens e das canções.

É interessante acompanhar tal distopia pelos olhos de uma máquina que não atende às expectativas daquilo que imaginamos como uma inteligência artificial avançada. Wall-E não é um humanoide ou um androide e pouco questiona sua existência até que EVA aparece. Porém, ele possui sentimentos. Ele experimenta a vida de uma maneira própria e é essa sua singularidade que é entregue ao espectador. Com uma tarefa praticamente impossível de ser realizada, ele vai seguindo sua vidinha dia após dia, mas sem deixar de reconhecer a solidão de sua existência. É um paralelo curioso, afinal, Wall-E se mantém firme em sua missão, mas, ao mesmo tempo, compreende que de alguma forma aquela “vida” é falha.

Acho interessante como o filme aborda o “fim do mundo”. A verdade é que não se trata de um fim em si, mas um esgotamento. O planeta existe – e, de certa maneira, resiste – mas deserto. De todas as grandes catástrofes, o ser humano acabou por fugir de si, de seus atos e consequências. Abandona uma Terra seca, cuja única vida para além daquela criada por mãos humanas são as baratas – amei como o “só sobrarão as baratas” não passou batido por aqui. É o ápice do fracasso humano, que continua na falsa vida criada dentro da nave. Após destruir seu planeta, a humanidade simplesmente fugiu e criou uma forma de abandonar o problema, escondendo-se por trás de paraísos artificiais e realidades de mentira (ou, no caso da atualidade/realidade a internet e suas redes sociais).

Aliás, é muito interessante observar o envelhecimento de Wall-E. Ao contrário de muitas distopias, que podem soar absurdas conforme o tempo passa, a animação fica mais e mais verdadeira. A vida alienada, padronizada e artificial está aqui, mais forte do que nunca. E é Wall-E, o ser teoricamente sem sentimentos (mas somente na teoria, afinal, ele é o que nos transmite as emoções do longa) que compreende o vazio daquele mundo e nos guia ao longo da narrativa. No mundo dessa animação, artificiais são os seres humanos.

A história vai mesclando a busca amorosa do robozinho com a rotina dos humanos dentro da nave, mostrando o leve despertar que os mesmos passam a ter a respeito da nossa “casa” e o que foi feito dela. O filme mescla bem melancolia e esperança, mostrando que é possível recomeçar mesmo que seja do mais básico. É bonito ver um robô com uma programação tão metódica e com um propósito tão aparentemente simplório ser o responsável por quase literalmente plantar a sementinha do despertar nessa humanidade fictícia. Inclusive, a maneira com que o filme faz isso é tema de um vídeo bastante interessante (infelizmente, sem legendas em português) que mostra um pouco mais como a narrativa contada tão cuidadosamente – especialmente por meio de imagens e sob a perspectiva dos robôs – dá o tom ao longa.

Como toda boa história com robôs, não falta uma pequena revolta. Eu amo a referência que o longa faz a 2001: Uma Odisseia no Espaço. Inclusive, apesar do tom de alerta e saudosista em certos momentos, Wall-E  tem grandes respiros cômicos e até mesmo um romance. É o tipo de história que busca abraçar vários gêneros e acaba por conseguir na medida certa. O encontro do caráter “durão” da EVA (aliás, apesar de significar Avaliadora de Vegetação Extraterrestre, não é por acaso que a sonda leva tal nome. Ela busca um sinal de vida na Terra, de um recomeço. Tal como a histórica bíblica, a vida – ou pelo menos a vida humana – se inicia a partir de Eva) com o sonhador de Wall-E é doce e transcorre lentamente, envolvendo o espectador pouco a pouco na narrativa.

Não apenas agora, mas à época do Acordo de Paris – encontro realizado em 2015 pelas Nações Unidas com o objetivo de estabelecer medidas para que as emissões dos gases de efeito estufa diminuam e a temperatura do planeta aumenta abaixo dos 2°C e do qual Donald Trump resolveu retirar os EUA – a força da animação já era lembrada. Não é surpresa, aliás, que o filme seja lembrado de tempos em tempos. A questão ambiental e a maneira como o consumo/exploração acontece tem trazido efeitos cada vez mais brutais (vide nossa atual pandemia), logo, é bom que relembremos as consequências de nossas ações – e nosso possível futuro – ainda que de forma mais suave e pelos olhos de um robô. Existem muitos filmes marcantes, especialmente entre as animações (eu mesmo tenho várias), mas Wall-E, com certeza, é especial.

*Para quem quiser ler mais sobre a relação entre o filme e o Acordo de Paris, tem uma matéria muito boa da Vox (mais uma vez, infelizmente, somente em inglês).

Navegue por nossos conteúdos

CONECTE-SE COM O CINEMASCOPE

Gostou desse conteúdo? Compartilhe com seus amigos que amam cinema. Aproveite e siga-nos no Facebook, Instagram, YouTube, Twitter e Spotify.

DESVENDE O MUNDO DO CINEMA

A Plataforma de Cursos do Cinemascope ajuda você a conhecer os segredos da sétima arte. confira as aulas disponíveis e amplie seus conhecimentos.