Teoricamente, quando falamos em contos de fadas pensamos em quatro elementos fundamentais: uma princesa, um príncipe, um vilão – que pode ou não ter poderes mágicos – e alguém que precisa ser resgatado eventualmente. Se partirmos dessa premissa, A Forma da Água (The Shape of Water, no original), mais novo filme de Guillermo Del Toro e que já arrebatou o Leão de Ouro no Festival de Veneza de 2017, o Globo de Ouro de Melhor Diretor e Melhor Trilha Sonora e 13 indicações ao Oscar 2018, incluindo melhor filme, é um conto de fadas. Porém, estamos falando da mente por trás de O Labirinto do Fauno e A Colina Escarlate e, se esse é um conto de fadas, é um “à moda antiga”, com tons sombrios, sexo, algumas bizarrices, mas, claro, muita beleza e lições de moral.

A história é aparentemente simples. Elisa Esposito (Sally Hawkings) é uma zeladora em um laboratório secreto nos Estados Unidos. Ela vive uma rotina bastante metódica, acordando sempre no mesmo horário, preparando seu café, interagindo com Giles (Richard Jenkins), seu simpático vizinho, e indo para o trabalho ainda durante a madrugada onde encontra a colega Zelda (Octavia Spencer). Tudo muda quando ambas são designadas para fazer a faxina em uma área secreta do laboratório e Elisa conhece uma misteriosa criatura aquática pelo qual ela vai aos poucos se afeiçoando. Em meio a conflitos internos e políticos, ela precisa encontrar um meio de executar um plano de fuga para salvar a criatura.

Não à toa que muitos irão relacionar o longa a O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (Le fabuleux destin d’Amélie Poulain). Elisa de fato possui traços similares aos da icônica personagem da obra de 2001 de Jean-Pierre Jeunet. Até mesmo a maneira como sua rotina é mostrada remete ao filme francês. Assim como Amélie, a jovem zeladora é uma observadora. Muda desde bebê, ela tem a capacidade de ler as pessoas e ambientes ao seu redor e talvez isso a torne tão empática. Com seu olhar expressivo, doce e sagaz, ela captura facilmente a atenção e desperta o afeto do público.

Porém, não só de doçura vive o longa. Narrado em meio às disputas entre Estados Unidos e Rússia durante a Guerra Fria, o filme traz também a dureza, frieza e as transformações trazidas junto ao conflito. O período, aliás, é uma referência ideal ao que vivemos atualmente, em tempos nos quais muitas vezes se coloca o lado humano de lado para alcançar a glória e são criadas divisões e rótulos (algo que se torna ainda mais emblemático devido ao fato de Guillermo ser mexicano). Logo, mais do que uma fábula ou uma história de amor, A Forma da Água é também um flashback histórico que vem nos lembrar que, por mais que os anos passem, continuamos insistindo nos mesmos erros e nos mesmos preconceitos.

E é aí que entra a figura da criatura. Capturado nas águas da Amazônia (que eu suspeito serem as que ficam em território brasileiro), ele é trazido ao laboratório pelo severo segurança Richard Strickland (Michael Shannon)  como um ser inferior, selvagem, animalesco. Adorado como Deus em sua terra natal, a criatura é vista como uma arma, um meio para os EUA se aprimorarem e tomarem a dianteira nessa disputa científica e bélica. Mais do que ser a Fera desse A Bela e a Fera Del Toreano, ele representa a forma como as potências enxergam aqueles vindos de países considerados inferiores. Objetos de estudo, são seres desprovidos de inteligência, ferozes, que servem apenas como fonte de aprimoramento daqueles já civilizados. Uma crítica que, forjada no pano de fundo da Guerra Fria, se aplica muito bem aos dias atuais.

Se não é só doçura, o filme tampouco se trata apenas de críticas políticas. Temos aqui dois protagonistas que fogem aos padrões. Elisa, sempre vista como alguém dócil, inferior, frágil – características que, inclusive, a ajudam em seu plano de resgate -, é julgada por sua mudez, da mesma forma que a criatura. O par, por consequência, é tido como anormal, avesso ao que seria correto. A inversão de o que é ser monstro feita por meio do personagem de Shannon e enriquece ainda mais a história. Afinal, como o próprio diz, se somos feitos à figura e semelhança de Deus, como algo que em nada se parece com Ele poderia ser considerado humano ou correto? Logo, o mesmo deve ser rejeitado por ser diferente, excluído, temido e violado. Enquanto que aqueles  que seguem à risca, mesmo que apenas nas aparências, a moral e os bons costumes devem sem glorificados.

Quantas relações não podemos enquadrar em Elisa e a criatura? Quantos são tidos como anomalias ou abominações por serem da forma que são ou amarem quem amam? Mais do que uma relação entre uma humana e um ser com características animais, A Forma da Água é sobre um par que não se encaixa no que é aceito ou tido como perfeito. Se ela é vista somente por sua deficiência, ele é definido por sua bestialidade.

Acima de tudo, essa é uma fábula também sobre encontrar a própria voz e permitir que outros encontrem e façam uso de sua voz. A história é sobre aqueles tidos como inferiores, desajustados e rejeitados, seja por sua origem, aparência, por seu modo de ser ou pela escolha de quem amam. De forma sutil, Del Toro aborda ainda preconceitos raciais e machismo, a posição de soberania que um homem branco se coloca diante de tudo que se opõe à sua visão doentia de mundo. No filme, temos uma criatura marinha, mas poderia ser qualquer ser humano que simplesmente não se enquadra no que é certo.

Apesar de alguns momentos exagerados e um tanto deslocados, a narrativa ganha também graças a seus personagens, em especial os de Shannon e de Hawkings. Apesar de como é vista pelo mundo ao seu redor, Elisa não é retratada somente como uma figura passiva e sonhadora, mas como uma mulher, com vontades, sentimentos e, principalmente, desejos. Se as cenas de intimidade da personagem parecem grotescas para alguns, a meu ver são mais do que acertadas. Não se trata de uma menina ou de uma mulher desprovida de desejos sexuais. Elisa é humana e, como tal, busca prazer, seja consigo ou com aquele que a atrai. Richard, por sua vez, é o típico “macho alfa inseguro”, que necessita de um cassetete de choque, um carrão e sexo selvagem para provar sua competência.

Tecnicamente falando, A Forma da Água é uma obra de arte. Sua fotografia escura e fria condiz com o período retratado e com a história que estamos acompanhando. Os efeitos visuais são quase perfeitos. Saber que a criatura é praticamente toda feita artesanalmente, com o uso do CGI apenas para os olhos e alguns efeitos, prova que o cinema pode ser crível e ir além sem precisar utilizar a computorização como muleta. A trilha sonora, envolta pelos amados musicais de Giles, dá um tom divertido e ameniza a densidade da história.

As atuações são primorosas. Sally Hawkings está muito bem como Elisa, a capacidade da atriz de transmitir emoções apenas com expressões faciais e com o olhar é impressionante. Porém, Michael Shannon e Doug Jones merecem destaque. O primeiro por conseguir encarnar tão bem essa figura vilanesca e tão perturbadoramente humana e real e o segundo por fazer com que, mesmo por baixo de uma roupa minuciosamente elaborada e camadas de maquiagem, a criatura transmita tantos sentimentos. Velho conhecido de Del Toro, Jones já fez inúmeros personagens do estilo (inclusive, o Fauno de O Labirinto do Fauno). Talvez com esse trabalho ele finalmente obtenha o reconhecimento mais do que merecido que deveria ter.

Inspirado em O Monstro da Lagoa Negra (The Creature from the Black Lagoon), filme de 1954 dirigido por Jack Arnold, A Forma da Água tem material o suficiente para se encontrar as mais diferentes referências. Entre as mais óbvias, talvez estejam A Bela e a Fera e até mesmo A Pequena Sereia, porém, não se resume a elas. O longa tem suas falhas, é verdade, porém, nada que o prejudique gravemente. Mais do que uma história de amor, essa é uma história sobre o que nos torna humanos e o que nos torna monstros, é também uma história sobre lutar pelo que se acredita, conquistar seu espaço e se arriscar pelo que se ama. Mais que homenagens, referências e contos de fadas, A Forma da Água é uma história sobre a vida com todas as suas estranhezas, lutas e formas que ela pode tomar.

 

A Forma da Água

A Forma da Água (The Shape of Water)

Ano: 2017
Direção: Guillermo Del Toro
Roteiro: Guillermo Del Toro, Vanessa Taylor
Elenco principal: Sally Hawkings, Michael Shannon, Octavia Spencer, Doug Jones, Richard Jenkins
Gênero: Fantasia, Romance, Drama
Nacionalidade: EUA

Avaliação Geral: