Uma das vozes mais sensíveis do cinema contemporâneo brasileiro, Cristiano Burlan tem uma trajetória de vida marcada por acontecimentos dolorosos. Reconhecido principalmente por suas obras documentais e autobiográficas, produzidas com pouquíssimos recursos, ele tem sido capaz de transformar os próprios dramas em arte.
Na chamada “Trilogia do Luto” (que abrange o média-metragem Construção, de 2006, e os longas Mataram Meu Irmão, de 2013, e Elegia de Um Crime, de 2018), Burlan aborda sua relação com o pai, o irmão e a mãe, que o cineasta perdeu de maneira trágica.
Com seu mais recente longa-metragem, A Mãe, ele avança pelo terreno da ficção, mas sem deixar de lado uma das temáticas latentes em seu trabalho: os laços familiares rompidos por eventos catárticos, viscerais e, muitas vezes, cruéis. Neste caso, não se trata de um filho buscando respostas para o assassinato da mãe (como o que vimos em Elegia de Um Crime), mas de uma situação quase inversa: uma mãe desesperada, em busca do filho desaparecido.
Ainda que A Mãe seja uma narrativa ficcional, Burlan segue explorando suas vivências e lembranças da juventude passada no Capão Redondo, periferia de São Paulo. Seus personagens são, frequentemente, os marginalizados e periféricos, que convivem todos os dias com o medo, a brutalidade, a frustração e a injustiça.
Para interpretar a protagonista, o diretor convocou a fenomenal Marcélia Cartaxo (que ganhou projeção no cinema nacional interpretando a personagem Macabéa, no longa A Hora da Estrela, de Suzana Amaral). Aqui, ela é Maria, uma mãe solo e trabalhadora, de olhar profundo, que mora com o único filho, Valdo.
Um dia, ao retornar do trabalho, Maria não encontra o filho adolescente em casa – nem em qualquer outro lugar. Depois de uma busca incansável (e, por vezes, revoltante), que começa a ameaçar até mesmo os traficantes locais, todos os indícios levam a uma possível violência policial.
Em sua luta pelo direito de, pelo menos, ter um corpo para enterrar, a protagonista encontra outras mães na mesma situação. É excepcional também a participação, no filme, de Débora Maria da Silva, fundadora do movimento Mães de Maio, que reúne famílias das centenas de vítimas (a maioria negros e pobres) de violentos conflitos ocorridos em 2006, na periferia da capital paulista.
A jornada ingrata da protagonista, em busca de uma justiça que nunca vem, leva o espectador a questionar a realidade brasileira, na qual já se tornou corriqueiro e até banal que tantas mulheres, tantas famílias, fiquem sem resposta a respeito do paradeiro de seus entes queridos. Este mesmo país onde a desigualdade social só aumenta e onde a pobreza é comumente associada à criminalidade.
O longa foi um dos seis filmes pré-selecionados do Brasil para concorrer à indicação ao Oscar 2023 e teve grande destaque no Festival de Cinema de Vitória (vencendo nas categorias de Melhor Filme – júris oficial, popular e crítica, Melhor Diretor, Melhor Interpretação e Melhor Fotografia). Burlan também recebeu o prêmio de Melhor Direção no Festival de Gramado, em que Marcélia Cartaxo levou o Kikito de Melhor Atriz.
Em tempos nos quais a sociedade brasileira se torna cada vez mais dividida e alguns se manifestam em favor de ainda mais truculência policial, A Mãe traça um retrato delicado do drama particular de inúmeras mulheres periféricas. Uma tragédia que se torna universal e extremamente contundente pelo simples fato de desnudar a força e a perseverança do amor materno.
A realidade, que sempre foi matéria-prima do cineasta, aqui se mostra em toda a sua crueldade e arbitrariedade, na falta de perspectivas, na falta de respostas. Sem apelar para saídas fáceis, Burlan faz o público sentir um pouco da dor, da tristeza e da indignação dessa mãe, que não desejava nada além de viver em paz, ao lado de seu filho. Nos dias de hoje, um Brasil que permita a todos simplesmente viverem é algo de que precisamos desesperadamente.
A mãe
Ano: 2022
Direção: Cristiano Burlan
Roteiro: Cristiano Burlan, Ana Carolina Marinho
Elenco principal: Marcélia Cartaxo, Hélio Cícero, Debora Maria da Silva, Dunstin Farias, Helena Ignez, Henrique Zanoni, Ana Carolina Marinho, Kiko Marques, Mawusi Tulani, Che Mois, Tuna Dwek, Carlos Meceni
Gênero: Drama
Nacionalidade: Brasil