Por Sttela Vasco
Em agosto de 2014, uma notícia abalou os fãs de animação japonesa, o Studio Ghibli, um dos mais lendários do Japão e responsável por obras como A Viagem de Chihiro, Vidas ao Vento e O Conto da Princesa Kaguya fecharia as portas. Muito se especulou a respeito e, após inúmeros boatos, o estúdio se pronunciou afirmando que não se tratava de um fechamento definitivo, mas de uma pausa para a reestruturação criativa do local – o era que antecipado quando, poucos meses antes, Hayao Miyazaki, um dos fundadores, anunciou a aposentadoria. Ainda há muita controvérsia quanto ao destino do estúdio, se ele realmente voltará a produzir animações e se elas manterão o estilo conhecido das produções Ghibli. Logo, seja em definitivo ou para reformulação, nada mais natural que muita comoção e expectativa recaísse sobre a derradeira obra do estúdio antes de sua pausa. Foi este cenário que Hiromasa Yonebayashi encontrou ao lançar o seu As Memórias de Marnie (Omoide no Marnie), baseado no livro homônimo da britânica Joan G. Robinson. Emotivo e delicado, o filme carrega em sua composição a dedicação e o diferencial que um Ghibli tem. Fraco, no entanto, dificilmente entrará para o hall de melhores produções do estúdio, permanecendo na memória mais como o último filme do estúdio do que como uma real obra de arte.
Anna é uma menina de 12 anos, solitária e não muito feliz. Quando ela começa a ter crises cada vez mais severas do que parece ser asma, sua mãe decide enviá-la para viver com os tios em uma ilha isolada. Cheia de mágoas com os pais adotivos, a garota vai para o lugar sem grandes expectativas, até conhecer Marnie, a menina loira de vestido branco que sempre aparece na janela de um antigo casarão do lugar. Ela passa a se tornar a melhor e única amiga de Anna, que acaba por descobrir que Marnie tem muito mais segredos do que aparenta.
Assim como costumeiramente retratado em boa parte dos filmes Ghibli, As Memórias de Marnie é, essencialmente, um longa sobre sentimentos e também sobre a forma como nós lidamos com eles e com quem está ao nosso redor. Solidão, coragem, amor e amizade estão entre os principais abordados. A insegurança da protagonista é outro, apesar de tratado superficialmente. Anna se sente diferente dos outros, não se considera uma menina bonita ou inteligente e acaba por vezes expressando isso com atitudes agressivas.
A família também é um dos pontos abordados pela obra. Anna passa o tempo todo remoendo e questionando os mais diversos problemas relacionados a tal círculo: por que a abandonaram? Por que esconderam a verdade dela? Seus pais adotivos a aceitavam por amor ou por outros interesses? Passamos boa parte da história mergulhados no sofrimento dessa menina e em sua vontade de sentir-se parte de algo e querida. Todo o longa gira principalmente em torno desse tema, com exceção dos momentos em que é ofuscado pela amizade entre as meninas – o que também acaba entrando na esfera ”família” – e pelo lado obscuro que às vezes a infância pode possuir, tema que poderia ser mais bem explorado, no entanto. Marnie é uma menina claramente negligenciada pelos pais e maltratada pela babá que tenta melhorar o aspecto de seu próprio mundo fantasiando sobre sua história e escrevendo. Ela e Anna têm isso em comum: exprimem seus sentimentos por meio da arte. Uma desenhando e a outra em seus diários.
A principal falha de Memórias é criar demasiados nós que não consegue desatar a tempo. Na ânsia de manter seu principal mistério, coloca várias perguntas na cabeça do espectador, mas sem se preocupar em respondê-las aos poucos. Acabamos, durante o terceiro ato, recebendo uma onda de reviravoltas e revelações acompanhada de uma forte carga dramática, o que acaba por fragilizar a história e deixar algumas lacunas. As respostas que vêm, por sua vez, são excessivamente explicativas, quase didáticas, duvidando um pouco da inteligência de quem está assistindo e assumindo que sozinho este não seria capaz de compreender o desenrolar da narrativa.
Falta tempero em As Memórias de Marnie. Algo que o transforme em algo maior do que a história bonita e visualmente agradável que é. Uma das principais qualidades da maioria das obras do estúdio é não criar ”personagens descartáveis”, que aparecem na história por aparecer e acabam perdidos conforme o roteiro avança. Em geral, todos evoluem com a história e são trazidos de volta de tempos em tempos. Isso, porém, não acontece na obra de Yonebayashi. Alguns personagens são apresentados como se apenas para aumentar o mistério em torno da história de Marnie, são pouco explorados e ficam esquecidos antes mesmo do filme terminar.
[pode conter spoiler abaixo]
A maneira como os conflitos são resolvidos também não colabora. Com 1h44 de duração, a animação parece muito mais longa do que realmente é e explora mal o seu tempo. Anna, que chega tão infeliz à casa dos ”tios”, supera seus obstáculos e conclui sua jornada de um modo tão enrolado que tudo parece acontecer subitamente. Não importam os problemas ou as dificuldades, todos resolverão suas vidas e terminarão felizes e prontos para encarar tudo com mais leveza e alegria.
Apesar das falhas, As Memórias de Marnie tem seus aspectos positivos. A beleza e a forma simples de retratar a vida cotidiana estão lá, as metáforas – muito mais mastigadas do que de costume – também. E não se pode negar que se trata de uma animação carregada de emoção. Mesmo com o desenrolar frenético, difícil não se emocionar por Anna e, principalmente, por Marnie. O amor e a cumplicidade entre as duas é tocante e a forma como ambas se salvam mutuamente também. Há uma troca de experiências bonita entre elas e uma dualidade também: Anna gostaria de ter uma família como a de Marnie, Marnie gostaria de ser livre como Anna. Se trata de um filme sobre amizade, cumplicidade, amor e autodescobrimento e tem seu charme e encanto. Pena, porém, não ter força o suficiente para entrar na história do estúdio como mais um de seus clássicos e não somente o último filme por ele produzido (por enquanto).
As Memórias de Marnie (Omoide no Marnie)
Direção: Hiromasa Yonebayashi
Roteiro: Hiromasa Yonebayashi, Keiko Niwa
Elenco Principal: Nanako Matsushima, Susumi Terajima, Toshie Negishi
Gênero: Animação, Drama
Nacionalidade: Japão
Veja o trailer: