Em oito de cada dez entrevistas os humoristas são perguntados “qual é o limite do humor?”. Segundo Marcelo Adnet, em uma participação recente ao programa Roda Viva, se algo é crime, está aí o limite. A nova comédia do ator Sacha Baron Cohen, Borat – Fita de Cinema Seguinte (2020) testa bem até onde esse limite pode ir.
O filme é uma continuação direta de Borat – O Segundo Melhor Repórter do Glorioso País Cazaquistão Viaja à América (2006), falso documentário que pegou todo mundo de surpresa questionando o que era real e o que era falso. Nesse novo episódio, Borat foi duramente criticado pelo governo e os habitantes do seu país de origem por ter os ridicularizado mundialmente com o sucesso do filme original. Como forma de tentar reparar seus erros, ele é enviado novamente aos Estados Unidos para entregar um presente ao vice-presidente Mike Pence.
O primeiro desafio é que Borat agora é um rosto conhecido, então onde quer que ele vá as pessoas o cercam, complicando um pouco sua missão. Como saída, ele precisa utilizar disfarces dos mais diversos. Boa parte do humor ou comentários sobre a sociedade estadunidense vem daí. Um dos primeiros disfarces que ele escolhe é do “típico americano” usando uma fantasia de homem obeso. O país é conhecido pelos seus fast foods e altas taxas de obesidade.
Um dos momentos mais hilários de Borat: Fita de Cinema Seguinte é quando o protagonista, para entrar num comício de Pence, precisa encontrar um disfarce que o faça passar despercebido em meio aos apoiadores e políticos. Ele escolhe então, o traje do movimento supremacista branco Ku Klux Klan. A piada vem do fato de Donald Trump e seus apoiadores estarem constantemente com relações muito próximas a movimentos do tipo, apesar de todos negarem insistentemente.
Outro destaque e que muitas vezes ofusca até a presença do próprio protagonista é da sua filha, Tutar Sagdiyev (Maria Bakalova). Ela embarca escondida na viagem com o pai, que precisa lidar com a presença dela em suas missões. No seu país, filhas não tem direito nem mesmo a uma cama. Elas são tratadas como animais e vivem literalmente em jaulas. O único objetivo de vida é encontrar algum marido descente que lhes deem jaulas melhores. A presença de Tutar e a condição que viveu a vida toda entra em choque com os costumes americanos e a liberdade que as mulheres têm atualmente.
Ouso dizer que os momentos que envolvem Tutar são os melhores de Borat: Fita de Cinema Seguinte. Sua presença mostra o quanto a sociedade progrediu, mas ao mesmo tempo o quanto ainda tem falhas. Um dos mais interessantes é da personagem conhecendo seu próprio corpo. Quando mulheres nascem no seu país, os pais recebem um livro que traz regras que devem ensinar às suas filhas. Uma delas, diz que as mulheres não podem tocar suas partes íntimas. Como ilustração, o livro traz uma fábula de uma garota que fez isso e foi devorada para dentro dela. O momento que Tutar descobre que a história era mentira é hilária. E o mais interessante de ver é que o próprio Borat acredita que tais histórias podem ser reais. O repórter fica surpreso que a filha saiu ilesa da situação.
São nesses pontos que questionamos qual é esse limite do humor. Sexualidade, principalmente envolvendo mulheres, é um tabu até hoje. Falar disso em um filme de comédia parece não ser exatamente uma boa ideia. Ao assistir e entender o que irá acontecer a seguir, ficamos pensando “será que essa câmera vai realmente mostrar isso?”.
Os limites entre o real e o ficcional as vezes são bem claros e muitas vezes bem confusos. Borat: Fita de Cinema Seguinte é bem recente e suas gravações chegam à pandemia do coronavírus. Encontramos personagens tentando se adaptar ao novo mundo, tomando as devidas restrições. Ao mesmo tempo, outros negam qualquer existência do vírus. Um dos momentos que testam os limites entre a ficção e a realidade é quando Borat vai a uma espécie de comício de estadunidenses conservadores que negam a pandemia. A interação dos personagens e suas reações as vezes são tão absurdas que fica quase impossível saber se estão atuando ou realmente acreditam no que estão dizendo. Ah, e nessa onda, obviamente sobrou para nosso país. Nosso presidente é citado ao lado de Donald Trump e até do ditador Kim Jong-Um como “líderes mundiais durões”.
Apesar de ser um falso documentário, Borat – Fita de Cinema Seguinte parece ser um dos melhores retratos da sociedade estadunidense atual. Não só dela, mas do mundo que anda numa onda de retrocesso e conservadorismo. Tanto que, como dito, o próprio personagem cita personalidades de outros países, incluindo nosso Brasil, que enfrentam lideranças e cidadãos tão questionáveis quanto os estadunidenses.