O teórico e crítico Jean-Claude Bernardet, em seu artigo ¨Mimetismo, Cachoeiras, Paródia¨, discorre sobre a ambiguidade contida nas imagens de natureza, com destaque para as cachoeiras, registradas em abundância pelo cinema brasileiro, sobretudo em seu período silencioso:
¨Por isso me parece ter tamanha importância no cinema mudo, particularmente no documentário e no cinejornal, as tão filmadas cachoeiras, pois são ao mesmo tempo o espetáculo esplendoroso da natureza intocada e a promessa de energia. (BERNARDET, 2003, p.103).
Construindo Pontes, primeira incursão da diretora de fotografia Heloísa Passos (O Que se Move, Amor?, Como Esquecer, Lixo Extraordinário, Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo) na direção de um longa-metragem, de certa forma, toca nessa ambivalência. Não só quando coloca a natureza frente ao potencial de industrialização, mas quando escolhe como corpus e centro do embate de onde parte seu documentário dois antagonistas natos: ela própria e seu pai.
Uma cineasta e um engenheiro. Esquerda e direita. Um pai ausente, que não acompanhou o crescimento da filha, porque se ocupava do desenvolvimento do país. Um diálogo muito difícil de estabelecer (ou construir?). A cena da ferrovia, em que ele fica impressionado com a composição do trem, e ela com o pôr do sol, define em absoluto a tônica de todo o filme.
A partir da imersão em uma trajetória pessoal, busca-se reconectar pontas soltas do passado na relação entre pai e filha, ao passo que a história política do Brasil – inclusive a narrativa que está sendo construída nesse momento – é confrontada.
“Família é o não dito”, Heloísa define. Sem dúvidas, mas conviver, também é fazer política. Armados com argumentos que são verdadeiros lugares-comuns, escutados à exaustão nessa espécie de guerra discursiva tão polarizada, fica evidente um deslocamento de temporalidades – passado, presente, futuro. Afinal, de que Brasil estamos falando?
O documentário expõe a todo momento o seu modus operandi, sem medo de evocar passagens encenadas, a tentativa frustrada delas, ou, ainda, o seu encaminhamento até chegar onde se pretende. Essa estrutura me fez pensar na construção, calculada ou não, de personas (ou personagens, se preferir), já que um documentário se faz muito a partir da imprevisibilidade. Embora esteja bastante alinhada ao posicionamento político de Heloísa, me simpatizei muito mais com a figura de Álvaro, que além de protagonizar todos os alívios cômicos do longa, se coloca numa posição mais aberta ao debate, em contraponto com a reatividade de sua filha.
Foi curioso notar a reação de uma senhora que estava sentada do meu lado na sessão. Ela expressava concordância com Álvaro, não necessariamente por seus comentários ou inclinação política, mas pela repulsa à agressividade de Heloísa. Imediatamente pensei no coeficiente geracional implicado aí. Talvez não tenha como fugir disso, já que somos, invariavelmente, produtos de nosso tempo.
É raro, mas vez ou outra surgem filmes capazes de dar a largada numa problemática pessoal e chegar a um lugar de amplidão, suscitando, ou ao menos flertando, com questões de interesse e relevância coletiva, é o caso de João Moreira Sales com No Intenso Agora e de Sandra Kogut, com Um Passaporte Húngaro. Infelizmente, não é o caso de Construindo Pontes.
Em dado momento, a diretora grita a plenos pulmões que seu filme “fala sobre arbitrariedade”. O que me soa arbitrária é a noção de que o deslumbre com sua própria existência justifique a feitura de um filme.