Entre as várias digressões, reflexões e lembranças apresentadas pelo filósofo Jean-Louis Schefer em Danças Macabras, Esqueletos e Outras Fantasias, é marcante quando ele comenta que a força de uma imagem não depende necessariamente da fidedignidade de sua aparência com o mundo real. Para explicar o seu argumento, ele lembra de ter recebido uma imagem de uma antiga amiga que, tempos depois, faleceu. A imagem que essa amiga tinha lhe dado se tornou a sua própria amiga, ainda que ela não estivesse nessa imagem.
O filme Danças Macabras, Esqueletos e Outras Fantasias, com direção de Rita Azevedo Gomes, Pierre Leon e Jean-Louis Schefer, apresenta várias dessas pequenas iluminações. O ponto de partida são as Danças Macabras, imagens da Idade Média com esqueletos, que provavelmente representavam a morte, em meio a indivíduos das mais variadas classes sociais.
Ainda que o “protagonista” do filme fale muito sobre eventos e contextos históricos, como a possível influência da Peste Negra nessas representações, geralmente se percebe uma interpretação que não busca somente uma reconstituição histórica, mas principalmente uma análise mais ampla. Segundo os termos de Boris Kossoy, podemos considerar que a sua análise é mais iconológica, pois “se a análise iconográfica situa-se no nível da imagem, a interpretação iconológica tem aí seu ponto de partida, estende-se além do documento visível, além da chamada evidência documental. Trata-se da recuperação de diferentes camadas de significação. A interpretação iconológica se desenvolve na esfera das idéias, das mentalidades”.
Nessa amplitude, Schefer aborda, de maneira inspirada, sobre os possíveis significados da morte nessas representações, indo além do aspecto alegórico, mas pensando que a morte é justamente um espaço/tempo anônimo, onde identidade, poder e prestígio social não importam. Schefer parte de imagens para chegar à essas reflexões enigmáticas, mas para além da ontologia da morte, o principal debate levantado pelo filme, de maneira fragmentada, é sobre o poder intenso das imagens em nossas vidas.
Essa discussão carrega o espectro da morte. André Bazin, por exemplo, em Ontologia da imagem fotográfica, escreveu: “Fixar artificialmente as aparências carnais do ser é salvá-lo da correnteza da duração: aprumá-lo para a vida”. Mas, paradoxalmente, as discussões de Schefer estão permeadas por uma certa idéia de vida, seja nas próprias análises, que evidenciam como os esqueletos convivem com figuras vivas da sociedade, ou até nos próprios comentários, com muitas digressões (uma hora ele começa a falar de Virginia Woolf e se esquece dos esqueletos) e até momentos cômicos (o banal e o filosófico se encontram quando ele afirma que a essência do porteiro é estar na portaria, mesmo que ele não esteja fisicamente lá).
Assim, desde o início fica claro que não assistimos a verdade sobre os temas abordados, mas sim várias construções intelectuais, que, às vezes, parecem estar sendo construídas na frente da câmera. Não há um narrador com voz aveludada ou boa dicção apresentando didaticamente as principais teses do filme. Nós sabemos claramente de quem são aqueles pensamentos.
Há um paradoxo nessa personificação. A problemática da imagem não é tratada a partir da imagem (ainda que ela esteja presente), mas a partir da palavra, da palavra falada, da palavra falada de um filósofo que gosta de enigmas. Consequentemente, há uma certa fragmentação, mas que não me parece negativa. Foi um caminho escolhido. Apostar em planos longos de imagens seria incoerente com as suas próprias complexidades, já que não importa quanto tempo uma câmera ficaria em frente de uma imagem em um filme de quase duas horas, esse tempo longo nunca seria suficiente, como o próprio Jean-Louis Schefer pondera quando critica os visitantes de museus.
Se fincar na palavra falada em uma conversa com colegas ocasiona certas hesitações e desvios de raciocínio, mas essa fragmentação demonstra justamente como é difícil entender a força das imagens, principalmente porque não há uma resposta clara para as questões levantadas. Mais do que apresentar soluções, o filme apresenta questionamentos misteriosos, e que ainda podem nos afetar. Ao discutir quando os cristãos começaram a adorar a imagens, por exemplo, Schefer volta à Idade Média e demonstra como a nossa dependência das imagens tem um passado histórico definido e polêmico.
Não didatizar debates difíceis é um dos pontos fortes do filme, mas a escolha traz seus riscos. De um lado, há sempre a possibilidade (positiva) de Jean-Louis Schefer soltar alguma reflexão inspirada que ilumine questões complexas e sem respostas claras. No entanto, ele também pode se afundar em uma análise e afastar mais o espectador. Ainda que o pensador reivindique uma espécie de desconstrução ou uma relação com a imagem mais sentimental do que científica, os seus pensamentos partem de uma bagagem intelectual e acadêmica densa (ainda que seja para questioná-la). Deixar na tela essa ambiguidade faz parte da proposta do filme.
Mesmo que o pensador esteja em tela conversando com outras pessoas (na maioria das vezes Pierre Léon), as conversas não são necessariamente grandes diálogos, já que as participações dos outros são mais pontuais, servindo como ponto de partida para os argumentos ou esclarecimentos de Jean-Louis Schefer. Um diálogo mais interessante é construído na montagem, com a “intervenção” de cenas da história do cinema que se relacionam com os temas abordados.
Há de tudo: Disney, Mizoguchi, Renoir e mais. Existe uma certa independência nessa relação, já que essas imagens não estão sempre complementando ou ilustrando algum argumento de Schefer, ainda que elas apresentem uma ligação básica por meio da presença dos esqueletos. De certa forma, a inserção dessas cenas é paradoxal, pois se o filósofo quase não fala de fotografia/cinema (e os impactos desse tipo de imagem nos seus próprios pensamentos), as cenas acrescentadas claramamente não são obras de pintura totalmente construídas pelas mãos de algum artista. O objeto do filósofo e as cenas de cinema tem origens dinstintas. Se Schefer comenta representações, o filme intercala fotografias em movimento que, além de representações, também são registros. As diferenças entre essas imagens não são comentadas, mas se o espectador transpor, ainda que rapidamente, as reflexões sobre o anonimato da morte em representações da Idade Média para as cenas de cinema, o estranhamento se torna algo construtivo, inserindo novos contornos para imagens cinematográficas.
Mas o gesto deve partir principalmente do público, pois esse contraste não se aprofunda e nunca se transforma em parte da proposta. Além disso, o diálogo intenso que as obras de Rita Azevedo Gomes tem com outras artes, como literatura e teatro, também não é destacado nesse filme. O foco é o pensamento de Schefer. Isto não é um problema, pois ainda que ele comece na Idade Média, passe pelo Renascimento e termine na Pré-História, em comentários “em locação”, com belas filmagens em museus e na natureza, não são raros os momentos em que o pensador apresenta reflexões que podem ressoar nos tempos atuais, principalmente devido a nossa eterna preocupação com o espaço/tempo da morte.
*Esse texto faz parte da cobertura do Cinemascope da 13ª edição da CineBH – Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte.