Continuações e refilmagens costumam ser problemáticas, principalmente se for de um clássico. Parece-me, na maioria das vezes, uma operação um tanto caça-níquel e que não produz nada de muito relevante. Uma das raras exceções foi o recente Blade Runner 2049 (2017), continuação do clássico Blade Runner – O Caçador de Andróides (1982) e que eu (e um monte de gente) estava com dois pés atrás sobre a possibilidade da continuação de um filme tão icônico, mas deu tudo certo. 2049 conseguiu ser um excelente filme de ficção científica, com novos questionamentos e conceitos que não víamos há bastante tempo e sem desrespeitar a obra original. Visto isso, entra na jogada mais uma continuação que levanta bastante suspeitas: Doutor Sono (2019) que conta o que acontece após o final do clássico do diretor Stanley Kubrick O Iluminado (1980).
Como ouvi numa palestra certa vez sobre o universo do cinema de terror, O Iluminado não é um filme de terror, é o filme do Kubrick. Isso porque muitas vezes o universo do terror é visto como menor, quase exclusivamente de entretenimento e que não cabe a grandiosidade de um diretor como o Kubrick. Bobagem, mas faz certo sentido. Antes de assistir a Doutor Sono eu assisti novamente ao filme e realmente é bem diferenciado. Está muito além de uma produção comum do gênero. Apesar de já ter assistido, me surpreendeu muito a movimentação da câmera entre os cômodos e a cadência com que as coisas acontece. É tudo muito gradual e bem contado, o que nos faz ir cada vez mais fundo no universo do Hotel Overlook. Tanto que a direção sobrepõe mais do que os acontecimentos em si. O que nos atrai é como as coisas acontecem, mais do que especificamente o que acontece. Fiquei bem curioso de como seria fazer uma continuação de um filme de um diretor tão icônico quanto Kubrick.
A história de Doutor Sono é uma continuação direta de O Iluminado e vemos como Danny e sua mãe seguiram suas vidas após os acontecimentos no Hotel Overlook. Logo no início a primeira “surpresa” foi a não utilização de alguma técnica de computação gráfica para recriar o rosto dos atores do original. O filme resolveu assumir que eram outros atores interpretando os personagens antigos. Acredito que foi uma forma de economizar dinheiro em pós-produção. Mas, ao mesmo tempo, torna-se uma forma de já logo de cara se distanciar da obra de Kubrick. Como se dissesse que agora estamos num novo espaço, em um novo capítulo da história de Danny sendo contada pelo ponto de vista de outro diretor.
Passado esse primeiro momento de amarrar as pontas de O Iluminado, acompanhamos a vida adulta do Danny, agora interpretado por Ewan McGregor, e é aí que o filme acontece. A trama gira em torno de um grupo de outros iluminados, como são chamados os que têm os mesmos poderes que Danny, que se alimentam da alma de seus pares para terem uma vida mais longa. Danny tem a missão agora de salvar uma garota que tem as mesmas habilidades que ele e é uma possível vítima do grupo.
Aqui os fantasmas ficam mais de lado, surgindo apenas em situações específicas durante o filme. O verdadeiro foco está nos iluminados, tanto que a parte terror é bem pouca, principalmente em comparação ao O Iluminado. Em compensação, essa mudança de foco proporciona uma visão melhor da mente destes seres, em como elas funcionam e sendo explorada num formato cinematográfico numa vibe meio A Origem (2010) com uma inversão das regras naturais como a gravidade. Ponto positivo para o filme que explica isso utilizando apenas a imagem, sem subestimar a inteligência do espectador.
Apesar desse componente visual nos momentos de visita à mente dos iluminados, cinematograficamente falando, os pontos altos do filme ficam por aí. Diferente de O Iluminado, o que acontece no filme é mais interessante do que como isso acontece, como é mostrado. Os acontecimentos eram justamente minha principal preocupação com relação a uma continuação. Ficava tentando imaginar como iriam inventar algo para dar prosseguimento a história de Danny, mas deu certo. Acredito que muito é devido a Doutor Sono ser também uma história baseada numa obra de Stephen King, responsável pela obra do original, fazendo a continuação fica mais concisa. Isso dá um crédito a mais à trama e deixa com menos cara de “caça níquel”, algo apenas para vender utilizando os nomes Kubrick/King (apesar do escritor não ter gostado da versão de Kubrick). Pode ser injusto e até cruel querer comparar a obra de Kubrick com essa nova produção, dirigida por Mike Flanagan, mas é impossível não fazê-la. Flanagan também dirigiu outra adaptação da obra de King, Jogo Perigoso (2017) e é o criador da série A Maldição da Residência Hill (2018 – ).
Obviamente, como o próprio trailer do filme mostra, em algum momento voltaríamos ao hotel. Nesses momentos Flanagan faz algo interessante que é filmar as cenas utilizando os mesmos planos de O Iluminado para mostrar fatos novos. Pra quem já assistiu ao filme várias vezes ou reviu recentemente como eu, vai pegar a referência rapidamente. É um recurso visual interessante, mas aponta em direção a algo que está externo ao filme. O trabalho visual “genuíno” de Flanagan continua sendo o mergulho na mente dos personagens. O que não chega a ser um problema, mas, mais uma vez, é praticamente impossível não fazer essa comparação.
Depois do fim da sessão fiquei pensando: será que esse mesmo trabalho nas mãos de um diretor mais habilidoso resultaria numa obra mais interessante? Talvez algo próximo ao que foi visto em Blade Runner 2049? Bom, algo melhor ou tão bom quanto O Iluminado, eu acho bem difícil. Principalmente por que Kubrick tinha uma forma muito peculiar de realizar seus filmes. Acredito que, devido a toda essa carga que o filme tem e essa inevitável comparação ao trabalho de Kubrick, Doutor Sono é um trabalho difícil de ser bancado. A impressão que tenho é que Flanagan tinha a noção disso e utilizou recursos como o uso de novos atores que citei para conseguir o mínimo de distância possível do trabalho original e fazer sua versão da continuação. Ao mesmo tempo ao recriar os planos de O Iluminado ele mostra que tem respeito e entende que seria muito arriscado tentar algo novo num ambiente tão marcado pelas lentes de Stanley Kubrick.
Doutor Sono é então um filme que merece ser visto sem grandes expectativas no sentido de ser tão bom quanto O Iluminado e mais para descobrir o que aconteceu com Danny Torrance. Flanagan fez o melhor que pode respeitando os limites da existência desse grande clássico. Vai que Kubrick resolve puxar a perna dele aí, né?