Nos anos 1970, uma menina do Camboja vê sua vida desmoronar quando o grupo de militantes Khmer Rouge invade o país e instaura um regime autoritário. Esse é o ponto de partida de First They Killed My Father, o aclamado filme de Angelina Jolie que acompanha a jornada real da cambojana Loung Ung (interpretada de maneira expressiva e maravilhosa pela jovem Sareum Srey Moch).
Loung era uma garota de classe média que tinha uma vida confortável na capital, graças ao emprego de seu pai no governo. No entanto, sua família foi obrigada a fugir e se refugiar em um campo de trabalhos forçados depois que a ditadura se instaurou no país. A história acompanha o crescente horror das situações que a pequena protagonista é obrigada a enfrentar, desde a tristeza por perder um vestido vermelho até a separação dos irmãos e o assassinato dos pais.
Com grande sensibilidade, mas sem poupar o espectador das violências e desrespeitos aos direitos humanos cometidos na época, Angelina Jolie tenta fazer com que o público sinta e veja o drama de Loung pelos olhos da própria personagem. É visível o quanto ela inicia a história completamente desnorteada, sem entender ao certo o que está acontecendo e sem poder imaginar que irá perder praticamente tudo o que mais ama.
Aos poucos, conforme a menina entende a necessidade de sobreviver e é obrigada a participar de atrocidades que uma criança jamais deveria sequer presenciar, ela vai mostrando sua força perante um mundo absolutamente opressor e desesperador. O mais tocante é que, mesmo tendo passado pelos piores absurdos, Loung não perde a esperança na vida e no reencontro com sua família – ou o que restou dela.
Baseada no livro First They Killed My Father: A Daughter of Cambodia Remembers, escrito por Loung Ung, a história é apenas uma entre as inúmeras tragédias que ocorreram no Camboja durante o regime do Khmer Rouge, que matou quase um quarto da população do país. Alegando que não haveria mais divisão entre pobres e ricos, que o individualismo era inimigo da igualdade e da justiça, os militantes subiram ao poder ilegitimamente, tiraram os bens de toda a população e obrigaram milhares de pessoas a trabalhos forçados em condições extremamente precárias.
“O Angkar (a organização) rejeita a sociedade imperialista e feudalista. A propriedade privada corrompe o povo deste país”, diziam eles, enquanto se apossavam de dinheiro e objetos valiosos. Contudo, não foi somente aos bens pessoais que a população precisou renunciar, mas à sua dignidade. Arrancados de seus lares, os cambojanos sofreram todo tipo de abusos disfarçados de mentalidade revolucionária.
Em um lugar no qual o trabalho escravo é norma, onde a comida e os cuidados médicos são escassos ou inexistentes, onde as crianças são obrigadas a pegar em armas e a tortura é chamada de “educação”, o que surpreende é o fato de que a pequena Loung não permitiu que seu espírito fosse quebrado ou endurecido. Em meio à ansiedade, ao medo, à fome, à morte e à podridão, mesmo calejada pela crueldade, ela manteve suas memórias coloridas e sonhos de uma vida como a que possuía antes de cair no pesadelo do Khmer Rouge.
As lembranças de um passado de cor e luz contrastam de maneira gritante com a realidade sombria e opressiva. Não há voz off para explicar o que acontece e Loung quase não fala, mas seus silêncios dizem muito. Todos os diálogos, aliás, são na língua nativa do Camboja. Certamente não é um filme agradável ou reconfortante, talvez até longo demais, mas Angelina Jolie (que cresceu muito como cineasta, desde Na Terra de Amor e Ódio) respeita o material e o tempo das cenas.
Esse respeito é visível em cada quadro do filme. A diretora conheceu o Camboja no início dos anos 2000, enquanto gravava Lara Croft: Tomb Raider, e se tornou amiga de Loung Ung depois de ler seu livro de memórias. Posteriormente, Angelina Jolie adotou o pequeno cambojano Maddox, comprou uma casa no país e criou a Fundação Maddox Jolie-Pitt para trabalhar em prol da restauração e conservação da infraestrutura, meio ambiente, educação e saúde.
Foi Maddox, hoje adolescente, quem sugeriu a Angelina Jolie que contasse a história de Loung Ung. Ele atuou como consultor e produtor executivo no set de filmagem, mesmo sabendo que seria difícil e emocionalmente desafiador acompanhar de perto os horrores que seus conterrâneos cometeram. A própria diretora levou o projeto adiante apenas quando teve certeza do apoio local. O governo do Camboja não apenas autorizou as gravações no país como cedeu centenas de oficiais de seu exército para atuarem como figurantes no filme. Além disso, todos os milhares de cambojanos que participaram da produção possuíam algum tipo de conexão pessoal com a história, tendo perdido familiares ou vivenciado esse período.
Comprado pela Netflix, o longa recebeu diversos prêmios por seu delicado retrato da “morte da beleza”. Não há final feliz na odisseia da pequena Loung e muito menos em seu triunfo, mas a lição de vida é extraordinária. Como a protagonista escreve, suas lembranças são para que as pessoas nunca esqueçam, porque o presente não pode permitir que os erros do passado venham a se repetir.