O novo filme de Darren Aronofsky é um dos mais controversos de 2017. Esquecido pelo Oscar 2018, mas lembrado pelo Framboesa de Ouro, Mãe! despertou amor ou ódio, no melhor estilo 8 ou 80. Que bom. Não há nada pior que a indiferença. Mas independente das reações radicais despertadas pelo filme, é sempre interessante quando o grande circuito cinematográfico recebe um lançamento polêmico desse tipo, que opta por uma narrativa não convencional e com grandes estrelas no elenco, carregando uma dose intensa de simbolismos e alegorias.
Em minha interpretação, o filme funciona como um jogo de simbologias constantes, acionando diferentes referências, mas todas baseadas firmemente em um drama familiar e doméstico, no qual a mulher é um ser intensamente solitário e sobrecarregado de atribuições, cujo destino é a destruição. Essa destruição, vale ressaltar, não é um destino inerente a sua condição de mulher, porém é intrínseco à relação que ela tem com o seu companheiro masculino – que é, ao mesmo tempo, um simples marido intelectual e uma força divina insaciável. O fato desse homem não fazer algo de significativo para proteger a casa que sua mulher reconstruiu fornece uma visão crítica sobre a sua figura, pois tanto na esfera doméstica quanto divina, o prolongamento da sua existência praticamente depende da destruição sucessiva de várias mulheres. No entanto, se o filme propriamente dito apresenta uma representação crítica da mulher – sem a necessidade de informações exteriores para constatar essa característica – há vários elementos misteriosos durante a obra. Não solucioná-los inteiramente pode ser justamente uma proposta. Sempre gosto de lembrar uma citação do teórico de cinema Noel Burch sobre alguns filmes obscuros: “Não existe nada que possa estragar mais nosso prazer em nos perdermos em seus labirintos, feitos para a vista e para o espírito, do que procurar uma significação oculta para eles. ” Alguns dos labirintos de mãe! possuem significados, mas outros existem simplesmente para fazer com o que o público se perca neles, em um impactante processo de imersão.
No enredo, a mulher de um escritor está em casa com seu marido, um escritor em bloqueio artístico. Durante o filme, não conhecemos os seus nomes. Ela é interpretada por Jennifer Lawrence e ele por Javier Bardem. No passado, somente o homem morava local, mas a casa sofreu um grande incêndio, sendo reconstruída por sua companheira. Com os dois já morando na casa quase totalmente refeita, eles recebem a visita inesperada de um velho médico (Ed Harris) que gosta de fumar e beber. Nos próximos dias, chegam na casa a sua esposa (Michelle Pfeifer) e em seguida os seus filhos. Esses passam a brigar devido ao testamento do pai, que está prestes a morrer. Um deles é gravemente ferido e morre no hospital, ocasionando um enterro na casa dos protagonistas. Começando com poucos familiares, o local vai recebendo cada vez mais pessoas, até ficar totalmente lotado. Após duas pessoas quebrarem uma pia, a personagem de Jennifer Lawrence grita para todos saírem. Sozinhos, o casal discute, mas em seguida eles começam uma relação sexual. Na outra manhã, a mulher acorda sabendo que está grávida. O escritor fica feliz e começa a escrever um poema inspirado no que ocorreu do dia anterior até aquele instante.
Essa é a primeira metade do filme, que apresenta uma caracterização relativamente linear de um drama familiar, no qual a crise conjugal é latente, porém visível, mais pelos silêncios que existe entre o casal. Quando o personagem de Ed Harris entra em cena, os fatos começam a ficar estranhos, mas sem quebrar o naturalismo da representação – o que acontece no filme é ainda crível, apesar de muito estranho. Vamos para a segunda metade.
Alguns meses se passam e o casal aparenta estar um pouco feliz, apesar de ainda distante. Ela continua cuidando da casa, enquanto ele fica escrevendo o poema que havia começado meses antes. Ao terminar, ela lê e se emociona. Logo em seguida, o escritor recebe uma ligação de sua editora, que está contente com o livro. Ele desliga e poucos segundos depois ela retorna a ligação, perguntando sobre o lançamento. Esse pequeno momento já denota uma transformação da ordem temporal, que vai se radicalizar a partir dali. O tempo do filme não segue mais uma linearidade, mas está condensado, se movendo muito mais rápido do que o normal. No cinema tradicional, essas elipses são comuns. Contudo, o interessante de mãe! é que há um exagero gradativo na transformação do tempo e a personagem de Jennifer Lawrence está tão surpresa quanto o espectador. A experiência, da protagonista e do espectador, fica mais radical porque tudo acontece dentro de uma mesma casa.
Em meio a tantas polêmicas, mãe! sofreu com a intensa discussão sobre o seu significado. O espectador que acompanha notícias sobre cinema até podia não saber nada sobre o enredo do filme, mas ele corria o risco de ter ouvido falar sobre as suas possíveis alegorias bíblicas. Os protagonistas seriam representações contemporâneas e aronofskyanas da natureza e de Deus, contando ainda com a presença de representantes de Adão, Eva, Caim, Abel e outras figuras. Diante dessas significações provocativas, quem encontrava resultados positivos, ficava satisfeito, mas quem se perdia na simbologia, odiava de forma panfletária a obra. Independente de quem está certo ou errado – discutir isto é limitador e sem sentido – é sempre perigoso ter ferramentas externas sobre um filme antes de apreciá-lo – seja na posição de espectador ou analista. Ao se tentar aplicar essa ou aquela teoria, se esquece o que o próprio material fílmico está dizendo. As teorias devem se desenvolver a partir do filme, e não antes dele – esse é o meu esforço.
Vamos começar pelos personagens. A mulher. Mais do que a natureza, mãe Gaia ou Maria, a personagem de Jennifer Lawrence é uma dona de casa solitária, introspectiva, desarticulada, que não tem relações sexuais com seu marido e não apresenta perspectiva de convívio social ou profissional fora de seu lar. Ela vive sob a sombra de seu companheiro, ainda que não seja uma mulher totalmente submissa. Existe uma certa personalidade na personagem, que é visível na forma como ela assume essa tarefa absurda de reconstruir, sozinha, uma casa inteira. Ela não se vê e nem se mostra oprimida, gostando de assumir a tarefa. No entanto, a sua força é usada principalmente dentro da órbita existencial de seu companheiro, o que é relativamente questionável. O homem é o artista por excelência: em seu árduo trabalho intelectual, ele não tem tempo de se preocupar com as pequenas coisas referentes ao lar, pois lá tudo pode ser refeito.
Essas caracterizações não foram apresentadas com diálogos expositivos, mas por meio de linguagem cinematográfica. Nessa primeira parte, a câmera fica em muitos momentos acompanhando as andanças da mulher pela casa, com pouca estabilidade visual, mostrando as costas de Jennifer em vários momentos. Sem glamour, a sua imagem fica impregnada na tela. Os outros personagens estão sempre distantes, inclusive seu próprio marido. Na verdade, ele é o polo conciliador, aglomerando gradativamente as pessoas em sua volta, enquanto a mulher permanece sozinha. O trabalho com o som é importante para essa construção, se distanciando da clareza funcional. Pelo contrário, o som é cheio de ruídos e enfatiza em vários momentos a distância espacial entre os personagens. Se Jennifer está na cozinha e o seu companheiro na sala – com outras pessoas – não ouvimos ele claramente, mesmo quando se direciona à sua mulher. Essas vozes distanciadas enfatizam a solidão de Jennifer. Os tempos silenciosos que povoam o nosso cotidiano – e que geralmente são cortados no cinema – em mãe! são enfatizados, ainda que a obra não trabalhe com os largos tempos mortos de um Tarkovsky ou Angelopoulos, mas fica em um meio termo.
As características descritas acima podem ser retiradas do material fílmico, mas elas nunca são escancaradas para o espectador. O personagem de Javier é um ótimo exemplo dessa abordagem cuidadosa, já que demoramos para perceber como ele é alguém criticável. No inicio, atende educadamente um estranho, mas depois o convida para ficar em casa, recebendo da mesma forma outras pessoas estranhas. Ao tomar essas decisões sem comunicar a esposa, ele afeta, de maneira invasiva, a sua intimidade. No entanto, o homem nunca perde, pelo menos na primeira parte do filme, uma espécie de charmosa simpatia. Um sorriso convidativo parece eliminar qualquer possibilidade de conversa. Ainda que as suas decisões sejam absurdas, os acontecimentos nessa primeira parte são apresentados de uma forma que não dão muito espaço para a reflexão, tornando a representação, nessa parte, verossímil, não tanto pelos fatos em si, mas pela forma como a narrativa é organizada. Por exemplo: quando o casal de visitantes quebra o amuleto do poeta, é fornecida a justificativa perfeita para serem expulsos do local, mas em seguida os filhos do médico chegam e começam a brigar, ocasionando a morte de um deles. Não há tempo para o escritor descarregar a sua raiva, pois ele precisa socorrer o homem ferido. Na sequência, o mais humano seria aceitar um velório na casa, considerando que a residência é o único espaço do local. Toda esse encadeamento prende o espectador e faz com que o irreal pareça real.
Não há muitos mistérios nessa parte do filme. Em termos de rimo, a narrativa é harmoniosa, no tempo certo. Os recursos de linguagem apresentam as nuances subjetivas de cada personagem. Dito isto, vale ressaltar que esses elementos não são nada gratuitos. Agora podemos entrar um pouco mais na questão da significação. Vamos descrever os personagens: a mulher é quem fica dentro de casa, construindo o lar, e o homem é quem sai da residência e não se envolve com tarefas práticas do cotidiano. As descrições retratam as funções ou papeis que foram, durante muito tempo, impostos ao homem e a mulher. Em um importante artigo sobre o filme Céline e Julie vão de barco (1974), de Jacques Rivette, a pesquisadora Julia Lesage afirma que muitas noções propagadas sobre a mulher são ficções criadas por instituições sociais que incorporam uma determinada estrutura de poder, geralmente escondida dentro dessa visão. Uma das principais ficções propagadas na sociedade coloca a mulher no âmbito da esfera doméstica, e não lucrativo, enquanto o homem pode viver na esfera privada, trazendo sustento para a casa. A mulher que cuida dos seus afazeres domésticos possui uma sabedoria feminina que sustenta essas estruturas de poder. A primeira parte do filme retrata isso com clareza. Ela é do lar e ele é do intelecto – e de forma extremas. Contudo, como já dito, essas condições, ainda que claras, não são impostas ao público com personagens maniqueístas – o que é ótimo. O homem de Javier não é retratado como um ser manipulador e perverso. E nem a mulher de Jennifer Lawrence é uma pessoa apática e submissa. Mas é o público que deve ter o senso crítico para perceber como aquela relação é problemática.
A primeira parte do filme se resolve bem como um drama conjugal concentrado em uma residência, apresentando elementos de suspense e terror ao trabalhar com a ideia dos visitantes inesperados que trazem caos à residência. No entanto, a segunda parte é praticamente outro filme. A estranheza que estava no ar anteriormente, explode. Os acontecimentos se desenvolvem em uma outra temporalidade, que não é a nossa. Cada minuto e cada segundo parecem comportar vários dias ou décadas. A confraternização de lançamento do livro do poeta se transforma em um culto de adoração. Os fiéis vão se tornando fanáticos, quebrando a casa, com várias brigas no local – com direito a invasão militar e execução de pessoas. O espetáculo visual é impactante e a violência gráfica nos atinge em cheio. Mas, sinceramente, violência por violência, qualquer Jogos Mortais consegue criar aversão no espectador. Me pergunto até que ponto todo esse espetáculo visual é necessário. Se a proposta é simplesmente impactar, ele consegue. Mas se a proposta for somente essa, me parece limitadora.
Mais interessante se torna a relação do casal. Ainda que permaneça com seu charme conciliatório, o homem se mostra alguém obcecado pelo fanatismo dos fiéis. A sua recusa em expulsar essas pessoas demonstra o quão perverso aquele homem pode ser, pois o caos irá trazer o fim para a futura mãe de seu filho. Consciente, ela se torna mais articulada e questionadora. As alegorias bíblicas ficam sólidas nessa parte, atingindo o máximo quando Javier diz “Eu sou o que sou”. A constatação pode criar um paradoxo no espectador cristão, pois ele descobre o quão destruidor pode ser Deus. No entanto, não acredito que se deva pensar que essas metáforas resolvam o filme inteiro. Aliás, ele não precisa ser totalmente resolvido. Mesmo que o homem tome a posição de profeta ou Deus, isso não significa que durante todo o filme ele foi um profeta ou Deus. Não adianta acionar ferramentas de análise ou apreciação usadas com filmes tradicionais em obras que justamente rompem com a narrativa padrão. Pelo contrário, é preciso entrar nessa perdição.
A forma como Javier constrói o seu personagem é extremamente complexa, pois ele nunca perde a ternura, mesmo quando perverso. O seu defeito trágico é o amor que sente pelo fanatismo em sua volta. Ainda assim, não é um vilão, tornando a metáfora com Deus problemática (no bom sentido). Primeiro o homem é um poeta, depois um profeta, até se assumir como Deus no final. O discurso de amar a humanidade a ponto de perdoá-la em situações extremas – que se desenrolam graças a um livre arbítrio – está em seu diálogo. No entanto, esse discurso é proferido em um tom de desespero e não plenitude divina. Ele parece mais buscar desculpas para continuar sendo amado do que necessariamente estar fornecendo um genuíno perdão. Considerando que o homem de Javier pode ser Deus, esse Deus não está isento de falhas e, consequentemente, de humanidade. Essas metáforas não são forçadas. Os seus fãs se tornam seguidores fanáticos que deturpam a palavra “compartilhar”, pregada pelo poeta, para destruir tudo em volta. Ao nascer o filho da mulher, ela suplica ao marido para que expulse aquelas pessoas da casa. O que ele faz? Espera ela adormecer para entregar o menino a multidão, que começa a estraçalhar o recém-nascido. No entanto, no meio do caos, Javier transmite espanto em seu rosto quando o menino começa a ser machucado. Ou seja, ele é passível de profundas críticas, mas não perde a sua capacidade de arrependimento ou ternura pelos que estão em sua volta, morrendo no caos criado pelo seu ego.
O final coloca o filme dentro de uma estrutura circular. O homem retira o amor de sua mulher que se torna um amuleto – no mesmo formato do amuleto que ele guardava em seu gabinete. Ao retirar, ela morre. Ele o coloca em um suporte e toda a casa e o espaço em sua volta passa das cinzas para a vida. Somos levados então até o quarto onde começou o filme, com uma mulher dormindo de costas. Ela acorda, porém não é mais Jennifer Lawrence. Essa estrutura engenhosa e sólida coloca a mulher em uma posição destrutiva – já que ela sempre vai morrer no final – e o homem em um lugar opressor – já que a destruição da mulher ocorre a partir das decisões do homem e ele permanece vivo mesmo com a morte de todos.
Acredito que essa representação questionadora sobre o lugar da mulher é a questão mais clara que o filme constrói. Basta descrever alguns recursos de linguagem ou ainda a ordem dos acontecimentos para identificar como a personagem de Jennifer Lawrence é uma mulher solitária e oprimida. Na segunda parte do filme, há um choque intenso de temporalidades que realmente pode ser caótico e irregular, mas esse caos só reforça as condições subjetivas que foram construídas – solidamente – na primeira parte do filme. Ainda que eu entenda como o filme possa ser engenhoso (e prepotente) em suas simbologias, perturbador (e às vezes gratuito) em sua violência gráfica, e transgressor em sua narrativa (ao quebrar gradativamente com a linearidade dos fatos), ainda assim ele não deixa o público perdido. Na verdade, mesmo com os seus defeitos, acredito que a obra é um ótimo exemplo de união entre diferentes propostas cinematográficas: uma clássica e outra moderna, pois o filme consegue ser impactante em suas ambições, mas não deixa de construir as principais nuances dos protagonistas, e o elo entre público e personagem é uma das principais características do cinema tradicional. Já no âmbito moderno, a obra retrabalha questões que foram tratadas em filmes como Anjo Exterminador (1962), de Luis Buñuel, e A hora do lobo (1967), de Ingmar Bergman (além de lembrar indiretamente Tudo bem (1978) de Arnaldo Jabor – no qual um apartamento em reforma recebe vários indivíduos que representam a sociedade brasileira). É possível questionar se o resgate que Aronofsky faz dessas temáticas é mais pobre ou mais rico, no entanto, é ótimo que um diretor consiga trazer esse tipo de obra – alegórica e inquisidora – para o cinema mainstream hoje em dia – podendo propiciar a um público diferente uma experiência que, em tese, estaria mais localizada em outros nichos.
Diante do furdúncio em volta do filme, pensei que iria assistir uma obra no estilo de A Montanha Sagrada (1973), de Alejandro Jodorowsky, baseado em um complexo jogo de simbologia no qual é necessário uma pesquisa exterior para compreender o filme. Em mãe!, ainda que uma pesquisa seja importante para identificar suas várias alegorias, ela não é imprescindível.
A baixa da bilheteria do filme e o seu esquecimento no Oscar e em outras premiações são tristes fatos, já que pode desencorajar a produção de outros projetos com ambições paralelas. Nesse sentido, ele é um dos filmes mais injustiçados de 2017. No entanto, de forma alguma essa realidade diminui a longevidade da obra. Pelo contrário, existe uma forte sensação de que o filme não precisa do Oscar para continuar existindo. Por mais deliciosa que seja essa temporada de premiações, não é segredo nenhum que muitos filmes indicados ou premiados não serão comentados futuramente, o que não é algo, necessariamente, negativo ou positivo, simplesmente é como as coisas são. Dito isto, eu não tenho medo de apostar que mãe! é um filme que não será esquecido no futuro. Alguns ainda irão comentar sobre ele, e outros, no silêncio, simplesmente não se esquecerão de uma ou outra cena – mesmo que tenham odiado ou amado. Esse tipo de obra que destrói qualquer possibilidade de indiferença é fascinante – para o bem ou para o mal. Não que qualquer filme alternativo e alegórico alcance esse resultado. Não. Há muitos filmes totalizantes e transgressores na linguagem que são esquecíveis dentro de sua prepotência. mãe!, porém, consegue impactar em toda sua inventividade. Mas espero que pelo menos lembrem e comentem o filme propriamente dito, e não a polêmica.