O filme Cidadão Kane (1941) é um título obrigatório para qualquer cinéfilo e aparece sempre nos lugares mais altos das listas de melhores de todos os tempos. Apesar de os holofotes da criação sempre repousarem na figura do diretor Orson Welles, existiam histórias de que ele não seria o principal responsável pelo sucesso do filme. É justamente a busca por desmistificar esse mito que gira a história de Mank (2020).
A produção foi lançada diretamente na Netflix e tem como diretor David Fincher cujo último trabalho com longa metragem foi Garota Exemplar (2014). Nesse tempo longe dos longas, Fincher trabalhou em produções para a própria Netflix como a série Mindhunter (2017 – )e da animação de ficção científica Love, Death and Robots (2019 – ). O roteiro de Mank foi escrito pelo pai do diretor, Jack Fincher, morto em 2003.
Mank então acompanha a história do roteirista Herman Mankiewicz (Gary Oldman), um beberrão que enfrenta sérios problemas pela sua língua solta, principalmente sob os efeitos do álcool, e sua busca por escrever o roteiro para o que se tornaria Cidadão Kane. Com cenas que variam entre o presente, quando o roteiro está sendo escrito, e o passado, caminhamos pelos corredores dos estúdios de cinema e conhecemos pessoas que seriam inspirações para os personagens e situações do clássico.
Filmado em preto e branco, Fincher utiliza uma estética bem próxima à do clássico para contar a história da criação do roteiro. Inclusive, diversas cenas imitam as do filme de Welles, como por exemplo, a queda do globo de neve das mãos de Kane é mostrado como uma garrafa vazia caindo das mãos de Mank.
Apesar do filme se chamar Mank, ele tem mais de Hollywood do que do próprio personagem título. Passamos mais tempo entendendo como as engrenagens da indústria norte americana funcionavam na época, do que propriamente ao lado do roteirista, entendendo sua vida. Apesar dele estar na maior parte das vezes em que conhecemos esses cenários, Mank parece estar lá mais para nos apresentar alguém do que desenvolver a sua própria história. É como se o diretor decidisse batizar outra produção sua, A Rede Social (2010), como Zuckerberg. Coisa parecida aconteceu com Steven Spielberge e seu filme Lincoln (2012). A produção foca mais nos bastidores do poder na época do presidente do que propriamente na vida do personagem título. O que não é necessariamente um grande problema para o filme, mas pode gerar expectativas diferentes quanto ao seu conteúdo.
Em produções anteriores, Fincher não tinha pudor em alterar acontecimentos e ações de personagem para lapidar seus filmes. Em adaptações literárias como de Garota Exemplar ou Millennium – Os Homens que Não Amavam as Mulheres (2011), o diretor mudou acontecimentos e conclusões dos longas com relação aos livros para criar uma versão que ele acreditava ser mais interessante. Isso é claro pensado junto com os roteiristas dos filmes, como pode ser visto nos making-of das produções.
A impressão que dá em Mank é que o diretor pode ter ficado muito apegado à forma que seu pai tinha criado e ficou relutante em fazer alguma alteração e, por exemplo, focar mais em Mank do que nos corredores dos estúdios. Um indício desse “apego”, é que Fincher inclui trechos textuais do roteiro em tela. Quando mudamos de uma cena para a outra surge, ao som de uma máquina de escrever, um texto indicando, por exemplo, o lugar e o horário em que a cena ocorre como se estivéssemos lendo o roteiro do filme. É como se o diretor dissesse “Foi assim que meu pai imaginou”.
Um outro ponto é, não digo que seja impossível, mas é bem difícil alguém chegar ao título de Mank sem conhecer Cidadão Kane. Porém, a produção de Fincher falha em construir uma certa ponte entre as pessoas ao redor de Mank e como elas são retratadas no seu roteiro. É preciso estar muito atento aos indícios e ter visto o filme muito recentemente para conseguir fazer a relação entre os dois. Talvez Fincher tenha acreditado demais que o público pegaria todas as nuances que os personagens de seu filme trazem para relacionar ao filme de Welles.
O que é bem interessante é a construção da figura de Orson Welles (Tom Burke). Ele é sempre citado como nome pródigo da indústria e que muitos olham de forma meio torta, mas quase não o vemos de fato. Quando ele surge em tela está sempre envolto em sombra ou de capa e chapéu. É a encarnação de uma figura mítica que iria povoar o imaginário cinéfilo para sempre. Suas divergências com Mank são construídas aos poucos até chegar a um combate explosivo. Emocionante ver o sarcasmo do roteirista ao confrontar o diretor.
Apesar de contar com diversos elementos que poderia tornar Mank uma das melhores produções de David Fincher, ele não consegue ser tão eficaz como em títulos como A Rede Social que também contava a história por trás de uma famosa criação e fazer diversos apontamentos sobre a sociedade. Talvez, o calcanhar de Aquiles do diretor tenha sido o apego à obra do pai e não ter escolhido retratar os acontecimentos à sua própria maneira como ele costuma fazer. Visto isso, o filme é uma excelente obra para conhecer um pouco os bastidores de Hollywood, mas não forte o suficiente para entrar na lista dos melhores filmes do universo de David Fincher.