Será que a saudade nos move, ou nos paralisa? Será que o American Way of Life é a democratização do consumo, ou a falência do capitalismo?
Após a crise econômica dos EUA em 2008, o nomadismo se tornou uma alternativa para pessoas que tiveram as suas vidas viradas de cabeça para baixo. Vivendo em vans ou casas motorizadas e se movimentando constantemente em busca de trabalhos temporários, encontraram uma alternativa ao sistema capitalista em crise.
Esta tribo itinerante recebeu em 2017 um livro sobre sua vivência: “Nomadland: Surviving America in the 21st Century”, escrito por Jessica Bruder, agora virou filme e está ganhando o mundo e a Academia.
O Nomadland de Chloé Zhao nos apresenta Francis McDormand como a protagonista Fern, uma mulher nômade, que mora em sua van e vive de trabalhos temporários: enquanto no Natal empacota produtos na Amazon, em outras épocas do ano trabalha em fast foods, clubes ou em colheitas de beterraba. Entendemos, a partir de sua narrativa, que sua vida nômade teve início após a morte de seu marido, com quem vivia e trabalhava em uma colônia industrial em Nevada, que fechou no colapso econômico do país.
Em sua jornada, Fern esbarra com outros nômades que assim como ela, encontraram um meio alternativo de mais do que sobreviver, viver à margem do sistema. Seus silêncios e dores, encontram eco em outros silêncios e dores, e nesta comunidade marginal todos podem encontrar as pequenas alegrias juntos.
Os silêncios das personagens são refletidos também na direção de arte, nas escolhas do roteiro, nos enquadramentos de câmera que muitas vezes são panorâmicos e fazem com que os personagens virem “pequeninos agentes” em um sistema gigante a ponto de engoli-los. Dentro dessa realidade de escolhas narrativas, todos estão consciente ou inconscientemente em busca de algum horizonte, algum fim, mesmo que para isso enfrentem um caminho seco e pedregoso.
A dureza no rosto de Fern só nos endossa a sua força, a força que só quem tem um universo de memórias dolorosas dentro de si é capaz de desenvolver. Os tons de suas roupas fazem pano de fundo à palidez e aridez de seu mundo exterior. Com uma cartela de cores opacas e com a predominância do azul, Chloé nos indica, sem precisar verbalizar, que o nomadismo de Fern é a eterna busca exterior, para alcançar uma paz interior.
Ao analisar o nomadismo da comunidade e de Fern, a diretora ainda consegue escancarar as complexidades do capitalismo norte-americano, que longe de ser democrático, é cruel e a solução não está em se encaixar neste sistema para ser aceito, mas sim buscar em um sentimento perdido de comunidade e de ancestralidade, uma felicidade e aceitação genuínas. Afinal, quando o sistema político-econômico entra em colapso, paramos para refletir que no fim das contas, vivemos de relações e dos frutos que a terra dá, não é mesmo?
Uma curiosidade sobre o filme é que Frances McDormand é praticamente a única atriz profissional, pois a maior parte do elenco selecionado por Chloé se constitui por nômades reais. São pessoas com mais de 60 anos que por muito tempo de suas vidas viveram as convenções de uma vida “normal”, com filhos, casas fixas, etc, mas que em sua velhice não puderam ter uma aposentadoria confortável garantida. Sem a segurança de seguir os últimos anos de suas vidas, largaram tudo para viver na estrada. As interpretações, portanto, são reais, de força ímpar, dificultando inclusive o entendimento do que faz parte do roteiro e o que é interpretação livre.
Nomadland pode conceder a Chloé Zhao a oportunidade de ser a segunda mulher a ganhar a estatueta de melhor direção no Oscar e poderá também se tornar a segunda mulher a dirigir o filme vencedor da categoria de Melhor Filme. A primeira, para relembrar, foi Kathryn Bigelow, em 2010, por Guerra ao Terror.
Vamos ver o que a premiação reserva a Chloé e a nós. Daqui, torcemos para um futuro cada vez mais feminino, em todas as premiações, em todos os anos.