Em todas as sessões que costumo ir, onde pretendo escrever sobre um filme depois, levo um pequeno caderno e uma caneta para fazer anotações do que estou vendo. Não apenas registra ideias ou pensamentos que me vem a mente durante a exibição, quanto me permite escrever sobre o filme algum tempo depois, podendo relembra-lo de forma mais completa. E é curioso que as expressões “absurdo” e “WTF” são as mais recorrentes nas minhas anotações sobre este O Amante Duplo, filme mais recente do cineasta francês François Ozon. Se isto é um bom sinal? Dependerá da disposição do espectador em aceitar aquilo que está vendo na tela.
Porque este filme entra num campo bastante particular e peculiar: o tempo todo ele caminha na liminar de se assumir como um thriller sério e tenso, mas ao mesmo tempo quase caindo para o kitsch total, fazendo-o ser um filme (in?)voluntariamente divertido e exagerado.
São tantos clichês e momentos que beiram o ridículo, mas feitos e conduzidos por Ozon com tanto afinco que tornam, ao menos, um filme bastante prazeroso e intrigante para se acompanhar. Então o que devemos julgar aqui? A forma como o diretor utiliza e constrói esses elementos com uma proposta de não se levar a sério ou realmente houve uma tentativa de tornar essa história em algo sóbrio?
Aliás, a história, escrita por ele e com colaboração de Philippe Piazzo e baseada livremente em um romance chamado Lives of the Twins, honestamente, poderia ter saído de algum episódio sensacionalista desses programas que passam no canal Investigação Discovery (provavelmente um Gêmeos e Perversos ou Casada com o Inimigo). Claramente a obra é uma ode aos thrillers eróticos dos anos 80, que provavelmente fariam Brian De Palma se orgulhar.
Partindo da personagem Chloé (Vacht), uma jovem moça que ao sentir constantes dores no estômago e não sendo identificável a causa pelos médicos, ela é encaminhada para o psicanalista Paul (Renier) e passa por tratamento. Conforme as consultas passam, os dois se envolvem romanticamente.
Esse pequeno início do filme é um exemplo ideal do impacto que Ozon consegue provocar no espectador ao criar um belíssimo raccord entre um olho e… bom, vocês saberão do que estou falando quando verem. É afrontoso e suficientemente sofisticado como técnica para atingir a atenção de todos para o enredo.
Uma sequência tão batida e utilizada de maneira tão preguiçosa em tantos filmes, que é a passagem de tempo para indicar uma mudança, aqui ganha contornos muito interessantes. Na sequência do consultório, Ozon opta por sobrepor os planos que se encontram Chloé e Paul e mesmo espacialmente distantes ali, a sobreposição dos planos os une, revelando a afinidade e intimidade que vão nutrir logo menos.
Então fica claro que apenas na introdução do filme, o cineasta tem uma maneira muito elegante e criativa de contar sua premissa, mesmo que o roteiro apele para cafonices sem tamanho como personagens escondidos atrás da porta sendo revelados em um momento específico ou o fato de haver um “segredo sombrio de família” sendo ocultado.
Algo também muito bem-sucedido na trama é sua carga sexual, que é essencial para um thriller erótico assumido e aqui é muito bem exalada. Os personagens são absolutamente abertos a realizar qualquer tipo de fetiche sem moralismo e o diretor também não possui, ao mostrar explicitamente várias situações. Basta constatar uma sequência onde a câmera enquadra o casal transando, se dirige até a boca de Chloé e… novamente, vocês saberão quando verem. Isto é muito auxiliado também pela química entre Vacht e Renier.
Marine Vacht (que trabalhou com o cineasta anteriormente em Jovem e Bela) aqui consegue reproduzir a gradual paranoia que a personagem vai adquirindo conforme o desenrolar da história e expressando com o olhar sempre atenção e medo. Já Jérémine Renier consegue criar uma distinção muito clara e crível das personalidades que têm.
E conforme a trama transcorre, o filme parece mais empolgado em abraçar seus absurdos e exageros, mas ainda com o esmero técnico de Ozon. Criando situações de bastante tensão e que consegue transmitir ao mesmo tempo uma química sexual palpável nos personagens. Um progressivo sentimento de perigo que apita para o espectador conforme aquela relação se desenvolve e obviamente por outros acontecimentos que envolvem Chloé, onde o conteúdo do presente que ela recebe é o ápice da ameaça.
Com um uso inteligente do design de produção, onde coloca a protagonista trabalhando em um museu de arte contemporânea, permite que o cineasta crie enquadramentos envolvendo ela e o ambiente do museu, soando quase oníricos. Logo depois criando mesmo sequências de sonho com uma abnegação de pudores tamanha que constrangeriam até mesmo os criadores de Game of Thrones. Também a direção de arte é eficaz ao traduzir com o espaço e as cores as diferentes personalidades de seus personagens, com os consultórios ou o apartamento do casal.
Algo óbvio aqui também e que novamente está na linha tênue do solene para o ridículo, são as simbologias que o diretor implanta no filme bastante recorrentes. Além da aparição de vários gatos (e um broche dourado) é recorrente, principalmente, os espelhos. Quase todas as sequências do filme apresentam o objeto, com o sentido indiscutível de ressaltar a dualidade moral e mesmo física dos personagens e contrapor esses dois lados opostos que parecem estarem em embate o tempo todo no estado emocional de Chloé.
Por mais bregas que esses elementos soem, é admirável o tamanho empenho que Ozon parece depositar e sua flexibilidade em temas, já que seu filme anterior a esse, um romance de época fotografado em um belo preto-e-branco chamado Frantz, assevera sua competência como diretor. Em momentos excessivamente explorados, como um personagem sendo perseguido por um carro em um estacionamento, o diretor é hábil em torna-los eficazes, dado o contexto de toda a obra. Apesar disso, me fez questionar a inteligência da personagem de optar por correr em direção reta e ao invés de ir para o lado, onde o carro não a alcançaria.
Finalmente, o filme atinge um terceiro ato com um plot twist coerente com toda a bizarrice apresentada até o momento. Apresentado pistas tão explícitas durante a projeção, contudo isso não compromete a condução narrativa no final e validando a eficácia de Ozon no uso de suas simbologias.
Apesar do duvidoso roteiro, ambíguo em sua proposta, O Amante Duplo é passível de duas leituras que o tornam bom ou não para quem o vê: se é um thriller erótico que se diz dramático e sisudo, é absolutamente cafona e um pastiche de todos os clichês do gênero possível. Se é um filme que consegue conduzir esse pastiche com a sofisticação e elegância de François Ozon, aliado ao belo trabalho técnico e do seu elenco e assentido sua áurea kitsch, é um filme inacreditavelmente ótimo.