Não é nenhum exagero cravar que Martin Scorsese é responsável pela concepção imagética e imaginária do universo mafioso. Sendo criador de obras essenciais para se estabelecer essa espécie de filme [Caminhos Perigosos (1973), Os Bons Companheiros (1990), Cassino (1995)], Scorsese aqui em O Irlandês parece não só retrabalhar arquétipos e atmosfera, como dar luz com um olhar mais maduro e envelhecido sobre seu legado e daqueles homens protagonistas de seus filmes que tentaram montar o seu e o tempo implacável o desmoronou.
Iniciando com um plano-sequência que claramente faz paralelo com aquele de Os Bons Companheiros (1990) – onde os personagens adentram um restaurante –, aqui Scorsese inicia sua história em um asilo em que se encontra Frank Sheeran (De Niro) que, para o espectador, conta a história de sua vida. Desde quando era um caminhoneiro e passou a ser o homem de confiança do mafioso Russell Bufalino (Pesci) e finalmente conheceu o líder do sindicato de caminhoneiros, Jimmy Hoffa (Pacino).
Baseado no livro de Charles Brandt e roteirizado por Steven Zaillian, o filme percorre em cerca de três horas e meia todos os impasses, conquistas e derrotas desses três homens, sob o olhar mais passivo de Frank, que corresponde com a visão do espectador por ser a grande testemunha que observa tudo aquilo. Ao contrário dos seus personagens em Os Bons Companheiros (1990) ou Cassino, o Frank de Robert de Niro é muito mais um observador do que alguém que age.
Nesse sentido, Robert de Niro compreende com perfeição a dureza e melancolia de Frank Sheeran, que ao ver uma oportunidade de ascensão na vida, rapidamente segue esse caminho. Mesmo sendo mais inativo, Frank não consegue esconder totalmente seu impulso destrutivo e violento, o que faz criar seu grande arco com sua filha Peggy (Paquin), que desde pequena percebe a má conduta do pai.
Outro ator que também foge dos seus costumeiros personagens é Joe Pesci. Geralmente esquentado e agressivo, seu Bufalino é absolutamente contido e por isso mesmo muito mais ameaçador. Com um pequeno gesto ou olhar, Pesci já traça um sentimento para outro personagem de que aquilo é uma decisão incorreta ou que aquele sujeito está condenado. Suas tentativas de ser amigo de Peggy também não deixam de ser ao mesmo tempo constrangedoras e trágicas, já que a menina reconhece também a brutalidade que vê no pai.
Finalmente, Al Pacino parece voltar à boa e velha forma com seu Jimmy Hoffa, onde cada “cocksucker” que grita é impulsionado de uma energia própria. Extremamente carismático e expressivo, Pacino é hábil em suscitar todos os maneirismos e personalidade de seu personagem e conseguimos reconhecer de antemão suas reações em determinadas situações (como quando um personagem se atrasa em um encontro com ele).
O Irlandês traz ainda um design de produção impecável que remete perfeitamente a todas as décadas que a história se passa, seja nas roupas (perceba como inicialmente as roupas de Frank e Jimmy combinam), seja objetos de cena que vestem os cenários das casas e locais onde os personagens frequentam.
A trilha sonora, que costuma ser algo importante para Scorsese, é bastante referencial e traz uma música com Le Grisbi, de Jean Wetzel, que lembra muito o tema principal de O Poderoso Chefão (1972).
Mesmo apresentando elementos muito clássicos dos filmes de mafiosos (basta olhar o elenco), Scorsese parece mais interessado em repaginar essas referências que ele mesmo foi responsável por imortalizar, além de entender as influências e consequências de tudo aquilo.
Não à toa, os filmes de mafiosos de Scorsese com um peso histórico maior são aqueles em que a história dos personagens é paralela à história e política dos Estados Unidos. Ao invés de olhar como um universo fechado, Scorsese abre esse mundo da máfia e revela as consequências sociais e políticas causadas por eles, tanto de forma coletiva como individual (basta lembrar dos letreiros que revelam os destinos de determinados personagens), o que gera um peso muito maior para todas as ações que acontecem ali.
Quanto à duração, mesmo cheia de polêmica, é perfeitamente justificável ao agregar carga dramática e temporal para história e seus personagens. Todo o terceiro ato de O Irlandês é de uma desolação atroz e cheia de ressentimentos para todos os envolvidos.
Carregado de um senso de humor maravilhoso típico do cineasta (ao saber que alguém morreu, a primeira pergunta de Frank é “quem mandou matar?”), O Irlandês é um filme sobre homens moralmente corrompidos e que sofrem pela distância afetuosa com pessoas fora daquele círculo. Todo o arco de Frank e sua Penny traduz a maneira machista e negligente que ele a tratou e posteriormente o condenará para sempre.
Scorsese tece momentos de tensão e expectativa com uma secura que deixa o espectador mais desolado ainda [lembrando o que fez em Os Infiltrados (2006)], O Irlandês é um filme cheio de referências, mas que parece mais em repensá-las e questioná-las do que as reviver. Assim, seu plano final, que em O Poderoso Chefão (1972) tinha o sentido de distanciar Kay do mundo de Michael, aqui, parece permitir que o espectador adentre no mundo de Frank, conheça sua história e dê algum sentido ao seu legado preenchido de tragédia, dor e solidão.