Por Cícero Pedro Leão
Em 2016, os cinemas brasileiros exibiram alguns filmes com temáticas sobre literatura, mais especificamente a poesia: Além das palavras, de Terence Davies, sobre a escritora Emily Dickinson, e Paterson, de Jim Jarmusch, sobre um motorista de ônibus que lê e escreve poemas. Agora em junho recebemos Poesia sem fim, do diretor chileno Alejandro Jodorowsky, que segue uma abordagem diferente dos citados filmes poéticos. Se Jarmusch busca atingir a poesia focando no dia a dia de seus personagens, Jodorowsky busca poesia ao ressignificar esse cotidiano, o transformando em uma afetuosa e nostálgica alucinação, já que a própria imagem é trabalhada de forma distorcida ao unir elementos de realidades dissonantes.
Poesia sem fim retrata o processo de autodescoberta do Jodorowsky, quando ele se liberta de uma vida opressora em casa – seu pai sonhava que ele deveria ser um médico – para viver com vários boêmios chilenos. Não pense que essa é uma biografia convencional. Já no início do filme é apresentada a perspectiva transgressora da obra: o jovem Jodorowsky sai de sua cidade Tocopilla e chega em Santiago, quando o verdadeiro e idoso Jorodowsky, com 88 anos, surge em cena e comenta que apesar de atualmente a rua Matucana, onde cresceu, estar em decadência, antigamente ela era a artéria principal de um bairro de trabalhadores. Logo em seguida, vários homens totalmente encapuzados com roupas pretas aparecem e movimentam painéis pelas ruas, com grandes fotografias em preto em branco que mostram como era o local no passado. A transparência cinematográfica é evitada enquanto a ilusão é intensificada, demonstrando como o filme faz parte de um processo de criação que não busca a verossimilhança.
Se no cinema convencional, um bom filme traça um pacto com o espectador no qual ele deve acreditar momentaneamente na ilusão projetada, Jodorowsky traça um outro tipo de pacto: o espectador deve sonhar com o sonho projetado. E este sonho, é preciso dizer, ocorre tanto visualmente, quanto nos diálogos, que possuem um teor lírico acentuado. Há uma cena, por exemplo, em que no meio da rua, Stella pergunta para o jovem Jodorowsky o que é a poesia, e ele responde: “O excremento luminoso de um sapo que engoliu um vaga-lume”.
O filme é como se fosse um Meia-noite em Paris, de Woody Allen, ou Os Sonhadores, de Bertolucci, mas filmado por um Fellini pós Doce Vida. Aqui, vale ressaltar, que Jodorowsky continua fiel ao cinema que o popularizou nos anos 1970, a partir de El Topo, quando despertou a atenção de fãs ilustres como John Lennon. Desde aquela época, expressões como surrealista e vanguardista caracterizaram a sua obra, que, no cinema, passou por diferentes hiatos (antes de 2013, o seu filme anterior é O Ladrão do Arco-Íris, de 1990). Apesar da lacuna e da idade avançada, o cinema de Alejandro permanece enérgico, principalmente em relação ao seu talento de criar em imagens impactantes que impressionam o espectador.
Há um momento, por exemplo, em que Jodorowsky (interpretado por Adan Jodorowsky, filho do cineasta), depois de brigar com seu melhor amigo, está no meio de um circo e passa a comentar sobre alguns acontecimentos tristes que ocorreram, até o momento em que esbraveja: “Sofrer é idiota. Não sou um palhaço. Sou um poeta”. Ele começa a tirar as suas roupas e a multidão do local levanta e grita repetidamente a palavra “poeta”. Nu e deitado em cima da plateia, o corpo de Jodorowsky é levado para a parte superior da arquibancada por um mar de mãos.
Além de cineasta, Alejandro tem uma carreira consolidada como escritor na literatura, no teatro e nos quadrinhos, tendo seu nome ligado diretamente ao movimento surrealista. Pensando nessa expressão, é nítido como muitas vezes o termo surrealista, no cinema, é ligado a uma grande ruptura, como ocorre em filmes de David Lynch e o próprio Jodorowsky. No entanto, sem necessariamente contrariar a esse pensamento mais generalista, é importante destacar, como comentou o poeta e pesquisador Claudio Willer, que “nem todo filme não-discursivo é surrealista.”
Além da quebra da linearidade, ou ainda das referências diretas com o movimento, o mais importante é enxergar uma espécie de universalidade do surrealismo. Willer novamente: “Surrealismo não é ‘escola’ de literatura e artes. É, em primeiro lugar, saber ver através do olhar da imaginação.” Estas reflexões são importantes para pensar Poesia sem fim, pois mesmo que o longa apresente rupturas, o espectador nunca se perde totalmente, sendo também afetado por um humor proveniente do absurdo das situações. Nós temos noção plena de que tudo aquilo é uma biografia imaginada, mas o percurso do protagonista é claro: jovem com pais opressores sai de casa e encontra outra família em um grupo de artistas libertários, até o momento em que ele se cansa da sua vida nesse grupo e parte para outro país em busca de novas descobertas.
Mesmo que o espectador não detecte as várias referências artísticas citadas ao longo do filme, existe algo mais humano que torna toda essa poesia visual que é Poesia sem fim em algo mais concreto para o espectador. Não pense que você vai ver algo somente diferente. Não. Você vai ver algo completamente transgressor, seja nos grandes personagens – como a mãe de Alejandro que só fala cantando – ou nos pequenos detalhes – como os mictórios que estão nas paredes de um bar em que Jodorowsky é expulso. Mas ainda assim, acredite, você vai se identificar. Quem nunca, em um momento de autodescoberta, se sentiu aflito devido a pressão de outra figura espaçosa, como Alejandro diante de sua amante Stella, e pelo menos não pensou: “Me converti em um espelho que só reflete a sua imagem. […] Eu te imploro, permita que me encontre”. No entanto, essa e todas as outras relações humanas do filme são permeadas de várias visões aparentemente desconectadas. Mas não tente dar um significado especifico ao caos que se apresenta. Pelo contrário, se jogue na perdição que Alejandro, paradoxalmente, constrói.
Essas biografias alucinantes não são novidades na história do cinema. Podemos lembrar Apolônio Brasil, o Campeão da Alegria, de Hugo Carvana ou Não estou lá, de Toddy Haynes. No entanto, as aproximações entre esses filmes são claras e distantes ao mesmo tempo, pois todos possuem uma forte singularidade referente ao estilo e biografia de cada artista. Assim, essas obras se tornam importantes principalmente quando o testemunho consegue ser impactante e não somente um exercício de nostalgia. O caso de Poesia sem fim é mais interessante devido as aparições do próprio Jodorowsky, pois, ao interagir com suas versões mais jovens, ele reflete sobre a impossibilidade de resgatar o passado e não se decepciona com esta constatação. Em vez de ser retomado, o passado deve ser transformado, para que o indivíduo, seja o próprio Jodorowsky ou espectador, aprenda a viver e morrer com felicidade.
Poesia sem fim (Poesía Sin Fin)
Ano: 2016
Direção: Alejandro Jodorowsky
Roteiro: Alejandro Jodorowsky
Elenco principal: Adan Jodorowsky, Pamela Flores, Brontis Jodorowsky, Alejandro Jodorowsky, Jeremias Herskovits
Gênero: Fantasia, biografia e drama
Nacionalidade: França, Chile
Veja o trailer: