Por El Diñero é um filme-manifesto que inspira manifestos nos espectadores. Manifesto porque é uma declaração sobre as dificuldades de se fazer arte, especialmente cinema e teatro, de forma independente nos dias de hoje. A obra demonstra como a necessidade de dinheiro pode ser tão intensa que até penetra (ou infecta?) o próprio fazer artístico. Mas o novo trabalho de Alejo Moguilansky é inspirador porque ele transforma essa realidade áspera e cruel em poesia, eliminando as barreiras entre vulnerabilidade, burocracia e arte: na representação extrema do filme, todos esses elementos se misturam.
Na primeira cena de Por El Diñero, dois corpos mortos estão em uma praia. Dois oficiais se aproximam, um deles comenta que aquilo é uma tragédia. Na delegacia, eles conversam com um sobrevivente, o monsieur Perpoint, interpretado por Matthieu Perpoint. O filme que assistimos começa a partir do flashback desse “interrogatório”, mostrando a inserção do francês em um grupo de teatro independente formado por Madame Acuña (Luciana Acuña), seu marido (Alejo Moguillansky) e Obelix (Gabriel Chwojnik).
Além do comentário dos oficiais, o próprio filme se apresenta como uma tragédia em três atos, apresentando na tela as passagens de cada um. Aqui é interessante notar que nas tragédias os heróis têm consciência de seus destinos, ocasionando conflitos internos (diferente da vertente dramática). Por El Diñero, claramente, não busca se aproximar de uma tragédia nos termos clássicos. Pelo contrário, o objetivo é desconstruir.
Mas a expressão é coerente não porque o filme é sobre a “trágica” morte de duas pessoas, mas porque o narrador reconta a história em volta desses indivíduos de maneira trágica: o passado que assistimos não é um passado reconstruído de maneira isenta e naturalista, mas ganha contornos lúdicos e melancólicos a partir da narração, que é super consciente do destino trágico de todos aqueles artistas rememorados. E trágico em dois sentidos: objetivo (com ações em meio a roubos, mortes e dívidas) e subjetivo (com os conflitos em volta do amor e do dinheiro).
Esse formato parece descrever uma visão idealizada sobre o artista, mas o filme vai além, ainda que não eliminando o seu lado lúdico (ele é até ampliado). Mas a questão que se coloca é como demonstrar esse processo de criação sem repetir uma visão romântica sobre os bastidores de uma produção e que se distancia das particularidades e constrastes dos nossos tempos. Diretores argentinos como Matías Piñeiro e o próprio Alejo Moguillansky apresentaram obras originais que abordam essas questões, sempre dialogando com diferentes manifestações e artes, como o documentário (Moguillansky) e o teatro (Piñeiro).
Nesse contexto, Por El Diñero se destaca pelo seu aspecto literário (nada de pureza cinematográfica aqui). Mas não digo literatura no sentido de adaptação e/ou inspiração (como ocorreu no El escarabajo de oro, de Alejo Moguillansky e Fia-Stina Sandlund) mas principalmente pela forma autoritária como o narrador do filme se apropria da narrativa, comentando tudo de maneira calma, embriagada, irônica e melancólica. Um Machado de Assis com Virginia Woolf.
O lirismo da estilização verbal transborda para vários segmentos do filmes. Os atores, por exemplo, não rompem o registro naturalista, mas geralmente estão nos limites, à beira de um ataque de nervos. Já a montagem tem um ritmo próprio que segue o fluxo da narração, não deixando espaço para o desenvolvimento dramático dos personagens, mas somente focando e preservando imagens que evidenciam a consciência trágica daqueles artistas.
Nessa organização, os três atos destacados no filme marcam uma interessante divisão, mas principalmente em relação à subjetividade dos personagens. Isto porque além da divisão apresentar acontecimentos essenciais na narrativa, ela também marca uma transformação na personalidade dos personagens: a cada novo ato eles ficam mais anárquicos, a cada nova cena a divisão entre certo e errado fica menos nítida. No final, o filme não parece estar mais no regime da realidade, mas tem um aspecto onírico e melancólico, com o terceiro ato se tornando o mais belo de todos.
Além da divisão em atos, Por El Diñero apresenta camadas internas, sendo uma peça dentro de um documentário dentro de um filme. No entanto, a força do filme não está em seus exercícios metalinguísticos, mas na forma como as dificuldades sociais e financeiras são incorporadas em um manifesto sobre a criação artística. Assim, assistimos poesia a partir de realidades como a expectativa não realizada de se ganhar dinheiro com uma peça que foi elogiada pela crítica mas não foi chamada para festivais ou a busca em várias instâncias para se conseguir dinheiro para passagens aéreas.
Nesses contextos, os próprios motivos para ser artista ganham novas camadas. O contato com o público? Talvez seja importante para o músico mal sucedido Octave de A regra do jogo, mas os artistas de Por El Diñero querem “somente” viver. Mas o que significa viver? No filme, é desde conseguir pagar uma dívida de cartão de crédito até vencer um prêmio cultural. Ou seja, passa pela necessidade do dinheiro. Mas, além disso, para o viver da trupe de Perpoint é essencial estar próximo da arte, ainda que distante dos outros. Não há soluções. A anarquia final escancara a falta de soluções. Mas preservar a poesia, mesmo com melancolia e pessimismo, talvez ajude a viver mais um dia.
Um causo. Conta-se que em 1953, quando A carruagem de ouro estreou em Pais, Jacques Rivette viu o filme pela primeira vez às 14h e o assistiu novamente no mesmo dia até meia-noite, pegando vários sessões, além de voltar no dia seguinte. O clássico de Renoir, estrelado por Anna Magnani, é sobre uma trupe italiana de teatro. Acredito que Por El Diñero pode ter o mesmo efeito nos dias de hoje. Eu quis vê-lo novamente até meia noite. Mas se em A carruagem de ouro é emocionante quando o personagem Antônio fala a Magnani que a “sua única maneira de encontrar a felicidade é sobre qualquer palco”, o filme de Moguilansky pulveriza a concepção de palco e teatraliza toda a sociedade. Não estou falando que o mundo é um palco (ideia antiga e básica), mas que, nessa obra, a sociedade (com suas banalidades e burocracias) é um teatro, exigindo dos artistas um esforço hercúleo, como narrou Perpoint:
“Nós éramos trabalhadores de luxo. E ninguém era rico o suficiente para nos pagar. Tínhamos que ser ao mesmo tempo o ator e o documentarista. Tínhamos que ser ao mesmo tempo o pintor e sua musa. O poeta e a paisagem. O rifle e sua presa. O cavaleiro e o cavalo. Dom Quixote e Cervantes ao mesmo tempo”
*Esse texto faz parte da cobertura do Cinemascope da 13ª edição da CineBH – Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte.
Por El Diñero
Por El Diñero
Ano: 2019
Direção: Alejo Moguillansky
Roteiro: Luciana Acuña, Walter Jakob, Alejo Moguillansky
Elenco principal: Alejo Moguillansky, Luciana Acuña, Matthieu Perpoint, Gabriel Chwojnik, Vladimir Durán, Rodrigo Moreno, Inés Duacastella, Marcos Canosa, Adrián Grimozzi, Edgardo Castro, Walter Jakob, Rafael Spregelburd, Lalo Rotavería, Cristóbal Peláez.
Gênero: Drama
Nacionalidade: Argentina