Algumas histórias, ainda que simples, carregam em si um potencial cinematográfico robusto. Claro que isso depende da capacidade do diretor, assim como das equipes de apoio, mas em Rio Doce todos estes fatores se potencializaram mutuamente e o resultado é positivo. Primeiro longa-metragem do recifense Fellipe Fernandes, Rio Doce é focado em Tiago (Okado do Canal), um homem negro que vive na periferia do Recife e está sempre às voltas para conseguir dinheiro. Com uma dor nas costas intermitente, o mundo do protagonista é reconfigurado quando ele descobre a identidade do pai e conhece a outra parte de sua família, que mora num bairro de classe média. Nessa dualidade de classes, relações e posições sociais é que o longa se estrutura.

No meio desse turbilhão de forças opostas está Tiago, um personagem interessante de acompanhar. Enquanto protagonista, ele vive um momento de mudança em várias frentes de vida – financeira, familiar, profissional – fato este que o expõe a situações que exigem comportamentos reveladores sobre sua personalidade. Por vezes, temos a sensação de que ele está sucumbindo à pressão, queimando as pontes entre suas relações e ficando cada vez mais isolado. Muito disso vem dos consecutivos desafios que Tiago precisa enfrentar e que parecem não oferecer uma saída fácil, seja o diálogo com a mãe de sua filha, a família por parte de pai que ele precisa conhecer e a dinâmica com a própria mãe, que por anos lhe escondeu um segredo.

Diante de uma trama desenhada com tantos ganchos, o público é rapidamente fisgado e permanece atento até sua conclusão. Em grande parte os méritos são do roteiro que trabalha bem com a tensão dramática e sabe construir expectativas crescentes na audiência quanto à trajetória de Thiago e os demais personagens. Em Rio Doce, todos parecem ter mais a dizer do que revelam por seus diálogos. Aos poucos, por meio de uma atuação afinada do elenco, vamos conhecendo detalhes da psique dos integrantes da história, característica que leva o filme a novos patamares.

A narrativa utiliza-se ainda de metáforas para abordar determinados assuntos. A dor nas costas de Tiago representa todos os sentimentos não expressos que ele guarda dentro de si. A casa de sua nova família, que tanto precisa de uma reforma, é um reflexo do próprio clã que ali habita e que parece interditado diante da revelação da existência de Tiago. Até mesmo o sonho do protagonista com um leão, num possível embate que nunca se concretiza, representa à sua maneira os sonhos que ele precisou abrir mão.

Tudo isso é mostrado ao público por uma competente fotografia de foco doce, com cores lavadas e tons pastéis. À medida que assistimos Rio Doce, é possível perceber o apresso com a iconografia, com a iluminação indireta, e com os movimentos de câmera, que realizam diversos enquadramentos dentro de um mesmo plano. Amplificando este trabalho, a montagem oferece longos planos que permitem que olhar do público vague pelos cenários e capte não só detalhes do design de produção e figurino, como também a sutilezas das atuações e da relação entre aqueles personagens. É um filme que cria momentos de respiro e, por meio deles, muito comunica.

A doçura da fotografia e do título vão aso poucos se traduzindo na vida de Tiago. Se no início suas relações, ainda que verdadeiras, são truncadas e cheias de incomunicabilidades, aos poucos elas vão se suavizando. Após a primeira estranheza ele consegue se conectar a uma das irmãs. Depois de entender os motivos da mãe, ele a perdoa pelo segredo há tanto guardado. Por conseguir desatar estes nós, sua relação muda com a mãe de sua filha. O choque de classes entre Tiago e sua nova família de classe média permanece. Mas é justamente pelos contrastes gerados nestas situações que Rio Doce se potencializa. Ainda que apresente um final um tanto apressado, a produção garante a Fellipe Fernandes o título de diretor pernambucano a se acompanhar.

 

Essa crítica faz parte da cobertura do Cinemascope do 10º Festival Olhar de Cinema.  Acompanhe todas as críticas aqui 

Rio Doce

 

Ano: 2021
Direção: Fellipe Fernandes
Roteiro: Fellipe Fernandes
Elenco principal: Okado do Canal, Cíntia Lima, Cláudia Santos, Carlos Francisco, Nash Laila, Thassia Cavalcanti, Amanda Gabriel
Gênero: ​Drama
Nacionalidade: Brasil

Avaliação Geral: 4