O estereótipo clássico do nerd no cinema é um cara esquisito, franzino ou acima do peso, geralmente de óculos, às vezes de aparelho nos dentes. Mas a principal marca é o fascínio ou por cultura pop (quadrinhos, livros, filmes de ficção científica) ou ciência. Muitas vezes um pouco das duas coisas.
Essas marcas no cinema e em demais meios condizem em boa parte com os nerds da vida real. Eu, que fui e ainda o sou com um pouco menos de intensidade, me reconheço bastante nessas representações. Mas o que queria dizer é que esse certo deslocamento faz com que nós, membros dessa tribo,nos aproximássemos e nos apaixonássemos por personagens e suas histórias como de Luke Skywalker em Star Wars, Harry Potter ou Frodo em O Senhor dos Anéis que, cada um a sua maneira, é também um deslocado.
Hoje, ser nerd está na crista da onda. Primeiro pela ascensão das redes sociais e dos smartphones que fez os colecionadores de itens de Star Wars ficassem milionários com os seus projetos de garagem. Segundo, pela onda de filmes de herói que é a nova sensação de Hollywood. Não só de lá, mas na TV com séries como Game Of Thrones e Stranger Things. Inclusive, achei muito engraçado, certo dia passei em frente a uma academia e um cara que saía de lá me disse: “Gostei dessa ‘peita’ hein. Do Batman”. Ele se referia a camisa que eu vestia quando estava a caminho da cabine de Shazam! (2019). Achei bem sintomático. Se estivesse em um filme da década de 1980, provavelmente eu levaria um puxão de cuecas.
Como uma nova tentativa da DC de ganhar destaque, Shazam! foge totalmente do tom sombrio que seus filmes insistiam em perseguir (sem muito sucesso) como herança da trilogia de Christopher Nolan. O objetivo é, claramente chegar mais próximo às produções de sucesso de seu principal concorrente, a Marvel. Aliás, na saída da cabine tinha um amontoado de pessoas, não necessariamente nerds, já fazendo fila para comprar ingresso para o lançamento de Vingadores: Ultimato (2019). Mais um sintoma.
Visto todo esse cenário, o filme segue a linha de Homem Aranha: De Volta ao Lar (2017): adolescentes que vivem em um universo que heróis existem de verdade e, de alguma forma, se tornam um deles. No caso de Shazam! o adolescente Billy Batson (Asher Angel, recebe de um mago poderes que são invocados quando diz a palavra que dá nome ao filme e o fazem se transformar em um super-herói adulto interpretado por Zachary Levi. Embarcado nessa premissa, o filme filosofa sobre o que é ser herói, o que ele representa e coisas do tipo. Você pode pensar que isso é coisa de qualquer filme do gênero, porém, a diferença aqui é que Shazam! não esconde que ele é um filme de herói e está “inventando a roda”. Pelo contrário, ele assume o que é e brinca com isso durante a história, fazendo chacota até mesmo do uniforme que o herói utiliza no filme (e que eu sempre vou olhar pra ele e me lembrar do achocolatado Nescau).
Falando em brincar, o filme esbanja nas referências à outros universos nerds, indo de Harry Potter até Street Fighter. Num dos trechos de Shazam!, por exemplo, numa tentativa de ficar famoso, agregar likes e um dinheiro, o protagonista começa a se exibir jogando raios para o ar na mesma escadaria que foi gravada a cena clássica de Rocky: um Lutador (1976), cantando a música tema do filme. O longa, então, extrapola os campos de seu próprio universo e de forma muito melhor do que o do falastrão Deadpool que no seu primeiro longa não era um filme e sim um show de Stand up com um cara mascarado (bem chato por sinal) fazendo piada em cima de piada.
Uma coisa que incomodou um pouco foi a mudança de personalidade de Billy para Shazam. Enquanto ele é apenas um garoto, sua personalidade é mais centrada e preocupada com problemas próprios e de sua família. Quando ele se torna o herói, fica exageradamente animado e fazendo gracinhas para o público. Sim, sim são personalidades diferentes e tal, mas o Batman, por exemplo, tem alguns pontos em que ele se aproxima do Bruce Wayne. E quando ele está desfilando por aí como playboy bon vivant, é construído como essa sendo sua verdadeira mascara e não a de homem morcego. As aparições de milionário são apenas uma distração para eliminar a possibilidade de ele ser o homem morcego. Em Shazam! faltou um certo equilíbrio entre as duas partes, algum traço que não eliminasse totalmente o Billy que existe no gigante. A linha que une as duas personas fica mais por conta do que é dito, das informações que o Shazam tem dos membros de sua família.
Mas a figura do nerd clássico que citei lá no início está em Freddy Freeman (Jack Dylan Grazer). É um moleque que sabe tudo sobre super-heróis, super vilões, suas fraquezas e etc. É justamente nos momentos que esse moleque surge que o filme nos mostra ter consciência de se encaixar numa adaptação de quadrinhos. Freddy é o responsável por testar os poderes de Shazam, mostrar as possibilidades de cada um, técnicas de luta e até apontar quem é o super vilão. O filme entende, através desse personagem, que nós, nerds, não queremos exatamente nos tornar um dos heróis que admiramos, mas ter uma oportunidade de estar ao lado deles e buscar inspiração para criar a nossa própria história, passando por barreiras e limitações inclusive físicas, representada no filme pela muleta que Freddy utiliza.
Esse filme me fez refletir muito sobre essas questões. Qual é a real função de um super-herói, mais especificamente para nós que observamos essas histórias pacificamente e não ativamente como Freddy. O que assistir a um filme dos Vingadores, por exemplo, representa para meu afilhado que hoje tem 10 anos e o que significou para mim assistir Batman (1989) e Batman – O Retorno (1992) quando eu era criança. Nós que gostamos de verdade, sabemos que eles significam muito mais do que somente uma camisa descolada, efeitos especiais e cenas de ação. E, por incrível que pareça, um filme recente da DC conseguiu fazer isso. Que Stan Lee nos abençoe para continuar assim. Amém!