Eu gostaria de começar este texto dando uma sinopse da animação Soul, da Disney-Pixar, recém-lançada no serviço de streaming Disney +. Poderia dizer que é um filme sobre música. Ou sobre a vida e a morte de Joe, um professor de música do ensino regular numa escola de Nova Iorque. Poderia dizer que é o primeiro filme da Pixar com um protagonista preto. Nenhuma dessas afirmações, embora verdadeiras, seria o bastante para descrever o que acontece nos minutos em que paramos para ver este desenho. Eu poderia falar sobre aspectos técnicos ou relacionados à trilha sonora, mas quero falar sobre discurso.

Qual vem sendo o discurso do estúdio?

Desde o lançamento de Divertida Mente em 2015, a Pixar vem dando mergulhos cada vez mais profundos em questões que, apesar de serem inerentes ao ser humano, são cada vez mais complexas de serem respondidas. O que pode acontecer dentro de uma criança quando ela passa por algum acontecimento transformador? Quais são os lugares de memórias e esquecimentos dentro de nós? Qual é a importância de vivenciar a tristeza?

Em seguida, em 2017, outro sucesso: Viva – a vida é uma festa. Um olhar sobre a morte enquanto celebração da vida por meio da cultura mexicana, não enquanto luto por algo que não volta mais. Em 2020, Dois Irmãos coloca em foco novamente a morte, a necessidade dos elfos Barley e Ian encontrarem com seu pai pela última vez, utilizando a magia há muito perdida em sua terra.

Com exceção deste último, que apresenta também o fortalecimento do laço entre irmãos ao longo do filme, o que se percebe é que estamos enfiando cada vez mais o pé na jaca nessas questões fundamentais, trazendo para a tela um produto a ser consumido por pessoas de todas as idades, que fala sobre propósito, alma, encarnações, segundas-chances, pessoas, almas perdidas e viagens astrais.

Parece uma bagunça, no começo de tudo, mas não é. Não estamos todos meio bagunçados, por assim dizer? É muito maluco pensar que um gigante como a Disney-Pixar poderia ser capaz de produzir algo sem (sabiamente!) nem tocar na palavra “Deus”, mas ainda assim fazendo menção a mentores, por exemplo. É bonito ver que, de certa forma, a indústria está percebendo as nuances entre fazer um filme infantil e fazer um filme para a infância, para as pessoas que questionam o mundo, cada uma a seu modo.

A geração que cresceu assistindo à Disney-Pixar principalmente antes da fusão, é fundamentalmente a geração Y, que se encontra na sua faixa dos 20 aos 30 e poucos anos. É a atual geração que questiona sua função no mundo, seu poder, suas escolhas, seu propósito.

É a geração que cresceu ouvindo de seus pais, tios, avós e professores que “esse aí vai mudar o mundo!”. E acreditou piamente nisso, até que chegou o momento de encarar esse tal mundo e percebeu que não tinha poder nenhum diante de algo inevitável.

É a geração que está fazendo transições de carreira porque descobriu que não existe paixão ou propósito no que faz. É a geração que busca o algo a mais, assim como Joe, assim como a Alma 22.

Soul veio para mostrar para a geração Y – e para quem quiser – que ainda que você seja completamente apaixonado pelo que faz, ainda que você encontre seu propósito – uma ideia atualmente muito propagada pela galera da espiritualidade new age que vale um post à parte – nada disso tem valor se você não se dedicar à maior tarefa de todas: viver.

Joe e 22 descobrem o prazer de aproveitar um pedaço de pizza, de recolher bugigangas, pedaços de linha soltos de um paletó velho, uma semente que voa com o vento.

Junto com eles, descobrimos muita coisa também.

Num ano em que perdemos tanto, incontáveis vidas interrompidas por motivos que nos fogem à compreensão, Soul responde às perguntas fundamentais saltando sobre o abismo do desconhecido e lembrando cada um de seus espectadores: na verdade, não importa de onde viemos ou para onde vamos. O que vale mesmo é colecionar esses pequenos momentos que dão sentido ao aqui-e-agora.

Soul

Ano: 2020.

Direção: Pete Docter, Kemp Powers.

Roteiro: Peter Docter, Mike Jones, Kemp Powers.

Elenco principal: Jamie Foxx, Tina Fey, graham Northon, Rachel House, Alice Braga.

Gênero: Comédia, Fantasia, Animação.

Nacionalidade: Estados Unidos.

Avaliação Geral: