Racismo, intolerância religiosa, crescimento urbano desenfreado, abandono paterno, crises financeiras… enumerando dessa forma parece uma lista de problemas recorrentes em 2020. Contudo, Todos os Mortos vem para nos mostrar que tais questões atormentam a sociedade brasileira desde o final do século XIX.

O novo filme de Marco Dutra e Caetano Gotardo é ambientado em 1889. Ao longo da narrativa acompanhamos as histórias entrelaçadas de duas famílias: os Soares, antigos donos de uma fazenda de café, e os Nascimento, descendentes de escravizados. Ana (Carolina Bianchi) vive com a mãe, Isabel (Thaia Perez) e recebe visitas frequentes da irmã freira, Maria (Clarissa Kiste). Quando a empregada negra morre, elas vão em busca de Iná (Mawusi Tulani), uma ex-escravizada da fazenda que foi dispensada por diferenças religiosas. Ana insiste em chama-la pois sabe que Iná pode realizar um ritual de cura e, com isso, auxiliar a saúde de Isabel.

Belamente ambientado, Todos os Mortos nos remente à tradição literária realista do final do século XIX, com sua trama que foge dos amores românticos e expõe, de maneira crítica, as mazelas da sociedade. Ao mesmo tempo, ao citar o poeta Cruz e Sousa, o longa traz pitadas do movimento simbolista em uma alusão à decadência dos valores estéticos então vigentes.

Ao observarmos a construção de época, essas características se tornam mais evidentes: as músicas clássicas vão dando lugar a marchinhas e polcas carnavalescas, as roupas vindas de Paris são enterradas no quintal, assim como os grãos de café, e a tecnologia começa a surgir na cidade, com a instalação das linhas de bonde. Tudo isso é evidenciado na fala de Isabel, que ao se ver saindo da Belle Époque, saúda o início do século XX.

Tal processo de transição também pode ser visto nos personagens. Via de regra, os indivíduos possuem diversos segredos que são revelados aos poucos, justificando suas ações e mudanças. Ana, por exemplo, possui uma condição mental ocasionada por uma agressão física paterna. Por conta disso, ela não sai de casa e se vê cercada pelos espíritos dos escravizados que morreram de maneira indigna. Ao romper os limites da casa, ela também supera barreiras temporais e caminha por uma cidade moderna. Já  Maria é atormentada por dúvidas que balançam sua fé católica, enquanto Iná trilha um processo de reconexão com suas raízes africanas.

Como uma poesia visual, Todos os Mortos estabelece um elo entre ancestralidade, religião e música. A insistência de Ana em recriar a cerimônia de cura vista uma vez na senzala da fazenda permite que Iná acesse antigos hábitos e volte a praticar sua religião de matriz africana. Nesse momento do filme, há uma sincronia entre fotografia e montagem: a cena em que Iná pratica sua religião é muito respeitosa e transmite uma beleza que transcenda a tela e toca o espectador. Nesse processo, a música é um elemento central que cria espelhos narrativos. A sequência de Iná rezando na sala dos Soares se relacionada às cenas de abertura e encerramento, onde personagens, separados por uma elipse temporal de mais de 100 anos, entoam canções a seus deuses. Como um perfeito ciclo, Todos os Mortos fala muito sobre a necessidade de aceitação religiosa.

Por se tratar de uma história ambientada apenas 10 anos após a assinatura da Lei Áurea, o racismo estrutural e o sentimento de outridade para com os negros é a regra. Iná é vista pela família Soares como um ser místico, capaz de realizar rituais mágicos de cura. A ignorância dos brancos sobre a diferença entre as religiões africanas é evidente e cabe a ela atestar o óbvio, de que a África é grande e no continente existem diversos credos. Novamente, esses diálogos poderiam facilmente ser transpostos para a nossa realidade, dada a situação anacrônica em que vivemos.

Com um ritmo mais lento, a produção utiliza uma fluidez temporal que situa os personagens ora no século XIX, ora nos dias atuais. Essa saída corajosa pode causar certo estranhamento a princípio, mas leva o público a refletir sobre a atualidade dos eventos que acontecem na tela. O que prejudica um pouco a experiência é a quantidade de temas abordados. Como um bom romance de fim de século, temos muitos personagens e muitas histórias acontecendo, o que pode confundir o espectador menos atento na identificação do tema central do longa.

Caminhando entre dois mundos, Todos os Mortos retrata um importante momento de mudança no Brasil. Lançado numa época de igual transformação, os paralelos com a nossa realidade são inúmeros. Os mortos que Ana vê não são apenas escravizados, mas também os corpos negros ignorados e invisibilizados da nossa sociedade. A mudança está na família Nascimento, que carrega em seu nome e em seus atos a promessa de uma nova estrutura social.

*Esta crítica faz parte da cobertura Cinemascope do Festival de Gramado 2020

Todos os Mortos

 

Ano: 2020
Direção: Caetano Gotardo, Marco Dutra
Roteiro: Caetano Gotardo, Marco Dutra
Elenco principal: Mawusi Tulani, Clarissa Kiste, Carolina Bianchi, Thaia Perez, Thomas Aquino
Gênero: ​Drama Histórico
Nacionalidade: Brasil

Avaliação Geral: 3