Discutir e pensar gênero é sempre uma tarefa que requer acima de tudo empatia, não há dificuldade – ou pelo menos, não deveria haver – em entender o outro e se encontrar na alteridade. Pensando nisso, o cinema vem cada vez mais (ainda bem) colocando em pauta as diferentes vivências, personalidades, individualidades para conseguir ainda que a passos lentos, dar visibilidade à causa LGBT.
O cinema de gênero não é grande o bastante para abordar a miríade de histórias que os indivíduos pertencentes desse grupo podem e devem contar. Estamos em uma fase em que vemos serem produzidos conteúdos belíssimos e complexos, com temática LGBT e que são dramas, são romances, são documentários, etc.
Sebastián Lelio nos agracia com a história de Marina, interpretada por Daniela Vega (mulher trans e cantora lírica), que se vê em uma situação crítica quando seu namorado morre em decorrência de um aneurisma e é obrigada a enfrentar a desconfiança da família dele, em uma clara alegoria da nossa sociedade, despertando identificação rápida nos espectadores mais atentos.
Apesar de parecer, a temática é mais profunda do que simplesmente mostrar o preconceito e o sofrimento da protagonista, a grata surpresa do filme está na lucidez e delicadeza do diretor, em reconhecer e apresentar o espectro cinza e não preto e branco da realidade trans: somos confrontados aqui tanto com as agressividades cotidianas, toleradas por serem sutis para quem olha de fora, como pelo respeito com que as pessoas mais próximas a tratam.
É com sensibilidade que acompanhamos Marina na busca de uma identidade que nem ela parece entender qual é, sustentada por planos compostos por espelhos que servem tanto para demonstrar suas incertezas, quanto a sua vaidade.
Em certo momento do filme, enquanto tem uma conversa que em um primeiro momento parece ser madura e educada com a ex mulher de Orlando (seu namorado), ela dispara que considera Marina uma Quimera – remetendo à imagem do monstro mitológico que tinha cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de serpente, uma combinação de elementos incongruentes – por não saber o que ela é.
Por não se reconhecer em categorias binárias e nem se encaixar numa caixinha de sexualidade aceitável socialmente, Marina parece não pertencer à lugar nenhum, e desumaniza-se sutilmente na visão de seus agressores. O seu amor e relacionamento estável com Orlando vira perversão, sua tentativa de salvar sua vida vira alvo de desconfiança, seu cachorro é sequestrado e seu corpo é sempre alvo da curiosidade e falta de bom senso inclusive de pessoas que se dizem “liberais”, como acontece com a detetive que acompanha o caso da morte de Orlando.
Lelio escolhe planos perfeitos para que nós espectadores criemos uma completa empatia e intimidade com Marina, participamos, junto com ela, de seus anseios e dúvidas, e o espelho está sempre lá, para lembrá-la de que não importa o que os outros veem nela, os outros não a definem, da mesma forma que não nos define os olhares e atitudes repletas de hostilidade. Os espelhos se completam com a escolha de planos que remetem aos sonhos de Daniela, como em uma cena na boate ou uma ventania na rua, são estéticas que fogem do padrão geral do longa, nos bombardeando com cor e surrealismo.
Para além dos clichês, Sebastián Lelio com uma direção primorosa e Daniela Vega com uma atuação impecável, nos levam pelas mãos, para refletir e pensar no processo de luta diária contra as intolerâncias diárias, os preconceitos velados. Uma Mulher Fantástica é um conto do cotidiano, que leva à luz os frutos semeados pela ignorância.