Podemos expressar nossos sentimentos sobre o mundo de forma poética ou descritiva. Eu prefiro me expressar de forma metafórica. E me deixe ser claro: metafórica, não simbolicamente. – Andrei Tarkovsky

 

A década de 70 foi extremamente turbulenta para Andrei Tarkovsky. 

Ao tentar fazer seus filmes em uma União Soviética repleta de censura, ele se via cada vez mais cercado de perguntas e questionamentos que norteiam o seu trabalho mas que não o deixavam em paz. 

Do que vale a arte se ela não pode ser completamente livre? De que vale a liberdade se ela não se faz presente em todos os aspectos da sua vida? De que adianta existir a arte, se ela não pode falar por si só? Mas, principalmente, quão difícil é viver em um mundo sem fé? 

Tarkovsky nunca escondeu sua religiosidade de ninguém, mas seus filmes não são religiosos. Eles contém uma espiritualidade inigualável, sem dúvida, mas ele nunca usou dos mesmos para pregar sua religião. Muito pelo contrário, quando dada a oportunidade, como em Andrei Rublev, ele utilizou-se do cinema e da expressão cinematográfica para questionar a conexão entre fé e arte.

Stalker, seu último filme feito em solo soviético, faz com que o autor volte para a ficção-científica e questione agora não somente seus personagens, mas o mundo como um todo. O que aconteceria se vivêssemos em um mundo sem fé? 

Stalker

Baseado no livro Piquenique a Beira da Estrada, dos irmãos Arkady e Boris Strugatsky, o enredo de Stalker é simples: em algum lugar do mundo, num tempo não determinado, existe a Zona – um lugar que não se pode explicar como veio a existir mas onde as leis da realidade não se aplicam totalmente. Os Stalkers são pessoas que guiam outras dentro da Zona, a fim de encontrarem a Sala, um ambiente misterioso que pode tornar todos os seus desejos mais íntimos em realidade. 

Acompanhamos Stalker (Alexander Kaidanovsky) guiando o Professor (Nikolai Grinko) e o Escritor (Anatoly Solonitsyn) dentro da Zona. Importante frisar que a Zona não é habitável, ela é isolada e protegida pelo governo exatamente por não saberem o que acontece dentro da mesma. 

Tarkovsky utiliza uma imagem em sépia, bem amarelada, quando estamos na cidade ao redor da Zona. A ideia de um lugar apático que não tem condição ou perspectiva de melhora, um mundo completamente esquecido e acabado. Mas tudo muda quando entramos de fato na Zona, lá as cores são vivas e a vegetação extensa. 

A Zona é o paraíso. Tudo nela tem vida própria, o caminho que eles seguem para chegar não pode ser o mesmo para sair pois lá tudo muda conforme a sua vontade. A Sala na qual seus desejos são realizados nunca é mostrada, porque o que existe nela não nos interessa, mas sim a fé que leva as pessoas até ela. 

O Stalker deixa claro que ele é o guia, ele é uma das únicas pessoas que conseguem entrar e sair da Zona sem maiores problemas, mas é notável, desde o começo, o medo que ele sente ao entrar na sua versão de paraíso. Quando ele acorda, ainda com sua mulher e filha – uma garota que aparentemente tem problemas para andar – sua esposa pede para que ele não volte para a Zona, ela diz que ele havia prometido que não voltaria mais, mas ele não pode ficar longe. Ele não consegue. Ele precisa ir para lá. 

Tarkovsky, católico ortodoxo, utiliza o seu personagem título como um condutor da fé. Mas que fé é essa que não o permite entrar na Sala para que seus desejos também sejam realizados? Se ele acredita tanto assim, e se ele está disposto a levar pessoas até a Sala sem a certeza da volta para a casa, por que ele também não se utiliza desse milagre?

Tanto o Professor quanto o Escritor são pessoas que não tem mais nenhum tipo de esperança, de perspectiva. Eles estão tão perdidos quanto o resto do mundo e a sua última cartada para uma vida minimamente digna de ser vivida é achar a Sala e compreender de uma vez por todas quais são seus desejos mais íntimos. 

“Um homem escreve porque ele é consumido, porque ele tem dúvida. Ele precisa provar constantemente para si mesmo e para os outros que ele vale alguma coisa. E se eu tiver certeza que sou um gênio? Por que escrever? Para quê?” 

Nenhum dos três de fato entra na sala. Nenhum deles tem coragem. Se você pudesse entrar em uma Sala que lhe conceda seus desejos mais íntimos, aqueles que nem mesmo você sabe quais são, teria coragem?

Stalker foi filmado na Estônia em usinas de energia desativadas e enquanto isso fez com que os cenários naturais ficassem ainda mais belos no filme, presume-se que o diretor e alguns outros membros da equipe faleceram devido a efeitos colaterais por conta da exposição a agentes químicos do local

Um dos filmes mais complexos para serem terminados, Stalker foi filmado 3 vezes. Problemas com o seu diretor de fotografia, com o câmera Georgy Rerberg que foi demitido quando em Moscou, ao ver as filmagens realizadas, perceberam que elas estavam em tom esverdeado e então completamente inúteis para Tarkovsky. 

O longa foi finalmente finalizado em 1979 e ganhou o Prêmio do Júri Ecumênico do Festival de Cannes, e juntamente com Solaris é um dos filmes do diretor com maior alcance do público em geral.

 

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