Se há algo que cadencia a cultura brasileira, e podemos dizer que esse algo batuca aqui desde o comecinho de nossa formação, é a musicalidade. Não só projetamos artistas que são expressivamente admirados por onde vão, como também sentimos, ou melhor, ouvimos a tônica musical do país por onde passamos. Programas televisivos, propagandas, carros de som, vendedores ambulantes, barzinhos, trens, ônibus, metrôs, nas ruas mesmo. Às vezes o barulho é tanto e em tanto lugar que só mesmo uma lei para pausá-lo – vide o caso dos anônimos (e irritantes) djs do busão. Claro que isso varia conforme a região do país, mas, enfim, não somos adeptos do silêncio.

Um cinema perpassado por valores caros à sociedade brasileira – suas religiosidades, seus antagonismos de classe econômica, etnia, geografia, suas esperanças políticas -, como é o caso do estilo de documentário de Coutinho, não poderia se furtar a abraçar também o elemento musical. Podemos dizer mais: a musicalidade talvez seja o elo de unicidade que atravessa os mais diversos períodos de realização de seus filmes. E não estamos falando em inserção de trilha sonora já na fase de montagem, artifício do qual Coutinho se livrou com o passar do tempo, mas da música cantada pelos próprios personagens como recurso performático.

Vejamos só: já em Santa Marta (1987), logo no comecinho, somos apresentados ao morro epônimo através de um samba-enredo cantado por um morador local: “No meu barraco a tristeza não mora, porque lá  em cima a alegria é toda hora”; Uma baiana de tabuleiro entoa um canto de Iemanjá enquanto fala de sua família em O Fio da Memória (1991); E Boca de Lixo (1993)? Certamente um dos momentos mais marcantes do filme sobre os moradores do lixão de São Gonçalo é a cena da moça que sonha em ser cantora sertaneja e solta a voz numa versão de “beijo por beijo, sonho por sonho…”; Babilônia 2000 (2000) apresenta a personagem Fátima encarnando a Janis Joplin no topo daquele morro, com uma visão magnífica do Rio de Janeiro; Não há como não lembrarmos também de Edifício Master (2002) e Seu Henrique disputando com Frank Sinatra a melhor interpretação de My way; Peões (2004) tem um momento de destaque com o ex-metalúrgico Seu Antônio tartamudeando “Debaixo dos caracóis dos seus cabelos”, ajudado pela filha; E, finalmente, sobre Moscou (2009) já escrevemos como há um foco de beleza na sequência dos dois atores em um dueto de “Como vai você?”.

Certamente ainda uma ou outra ocasião deixou de ser mencionada. O ponto é que essa retrospectiva de greatest hits do cinema de Coutinho dá a medida do lugar da música em sua concepção de documentário. Aliás, indo além, essa mostra nos faz entender que chegar a um filme como As Canções (2011), o último finalizado em vida pelo diretor, era quase um caminho natural cujos gérmens já vinham sendo plantados desde há muito.

Em sua participação no curso Visões do documentário, em 2008, Coutinho fora provocado pela pesquisadora Ilana Feldman, mediadora do evento, sobre o lugar da música em seu documentário. A cena que puxou o assunto foi justamente a da garota de Boca do Lixo. Na ocasião, Coutinho respondeu de pronto que “cada vez mais eu queria ter só gente cantando”, e em sequência lamentou as dificuldades de se executar tal desejo em face do obstáculo dos direitos autorais.

Fato é que três anos após ele se realizaria lançando este As canções. Podem ter contribuído para a empreitada de se fazer um filme só com gente contando e cantando suas histórias alguns fatores. Primeiro, aquele devia ser um plano que há muito pairava no universo criativo do diretor. Depois, esse seria um tipo de filme mais simples de se fazer, restrito a gravação em estúdio, como o foram Jogo de cena (2007) e Moscou (2009) – convém lembrarmos que o diretor à época já estava divisando os oitenta anos e vinha apresentando problemas de saúde que dificultavam sua locomoção por locações mais extensas. Além disso, e talvez seja esta a principal razão, o documentarista havia se enredado em uma tormenta na realização de seu último Moscou, conforme assinalamos em texto sobre aquele filme. Agora, ele queria algo de temática aparentemente mais leve: “Optei então por algo fácil e no qual eu teria prazer. A pesquisa foi feita nos meses de dezembro e janeiro, filmamos em seis dias e a montagem demorou pouco mais de dois meses. Nenhum filme meu foi tão barato, rápido e simples.”, em contraponto com o projeto anterior: “Não me arrependo nada de tê-lo feito, mas a experiência foi a mais dolorosa que tive”, disse o diretor à revista Exame.

A simplicidade de produção é inegável. Entre fins de 2010 e começo de 2011 a equipe de As canções circulou por pontos estratégicos do Rio de Janeiro empunhando cartazes com os dizeres “Alguma música já marcou a sua vida? Cante e conte sua história”.

 

 

Houve uma coleta inicial de quase 250 depoimentos. Em uma primeira triagem, cerca de 40 pessoas foram convidadas a gravar em estúdio, das quais 17 restaram na versão final do filme, lançado já no começo de dezembro de 2011.

Ou seja, um ano entre pré-produção e lançamento. Uma brevidade notável.

A simplicidade de realização, entretanto, não significa que o filme seja fácil ou primário. Na verdade, As canções é um falso fácil. Atrás da superficial leveza da proposta – afinal, nada mais é do que pessoas interpretando canções que lhes são significativas – se ancora uma ideia bastante semelhante ao que vinha realizando o diretor no tocante ao deslocamento de subjetividades: seja nos depoimentos trocados entre pessoas e atores, como em Jogo de cena; seja no terreno incerto entre ficção e vida, como em Moscou; ou seja, no caso do documentário cancioneiro, na construção de narrativas pessoais por meio de letras e melodias.

A  consciência da fala como performance, assim, enreda esses três documentários. Não à toa, a atmosfera minimalista do estúdio, adensando um quê de teatral, se repete também em As canções. O cenário se compõe somente por uma cadeira escura ao centro à espera das personagens que entrarão pelas cortinas negras dos bastidores.

Uma a uma, as pessoas entram e partilham memórias pessoais que se ligam a músicas cantadas em seguida – tornando presentes e corporificando as lembranças marcantes. Ou, ao contrário, outras primeiro cantam para depois narrar. Algumas poucas se limitam a somente interpretar as músicas.

No mais das vezes, as canções servem para exprimir o abandono de antigas paixões. Uma personagem se lembra do ex-namorado que cantava Vinícius de Moraes: agora, a música cobre sua ausência. Outra, chamada de Déa, manda, via Nana Caymmi, o recado a um amor remoto no tempo: “Onde você estiver, não se esqueça de mim”. A estrangeira Isabell criou laços com o Brasil por conta do ex-marido, que um dia a deixou. O sentimento só se exorcizou com a bênção do samba de Alberto Lonato.

Há ainda a incorporação da música em outros tons de afetos. O jovem Ramon apresenta uma composição própria, a linda “Dó”, para lidar com a morte prematura de seu pai. O personagem Ózio, de igual modo, se arranjou com uma música da própria lavra para pôr termo ao próprio luto. Viúvo, havia encontrado um novo amor e, assim, mandou um recado para a falecida: “Vai-se embora, meu bem, vai-se embora”. Gilmar interpreta “Esmeralda”, música que lembra sua mãe, ainda viva. Sem saber explicar o por quê, ele se põe a chorar após o canto.

A música, em todos os casos, parece ser como uma agulha hipodérmica que atinge em cheio pontos recônditos da memória, os quais não poderiam ser verbalizados de outro modo e, com isso, encontram só na poesia cantada uma tradução possível.

O tratamento performático do documentário se evidencia mais fortemente com a presença de Fátima, aquela mesma personagem que já aparecera na memorável interpretação de Janes Joplin em Babilônia 2000. O repeteco tem um dedo do diretor, que a convidou para participar desse novo filme. Após ela testar alguns louvores, Coutinho lhe sugeriu a interpretação de Ternura, famosa na voz de Wanderléa e Roberto Carlos, a qual acabou ficando.

Aliás, podemos incluir Roberto Carlos como um grande participante oculto do filme. Das dezessete músicas, ao menos quatro se relacionam com sua figura. No universo das canções populares, nenhuma outra voz talvez fale tanto pelo brasileiro. Pode ser que isso explique o fato dos documentários de Coutinho terem, através de vários personagens, a presença constante do rei.