Estamos em 1965 e Federico Fellini lança seu primeiro filme colorido: quase uma viagem lisérgica surrealista pelo inconsciente de Giulietta Boldrini (interpretada por Giulietta Masina, sua esposa).
Recheada de planos-sequência e panorâmicas, a trama gira em torno da seguinte premissa: Giulietta é uma moça casada há 15 anos com um empresário bem-sucedido e começa a desconfiar que está sendo traída.
Masina interpreta uma mulher submissa que vive numa mansão, completamente entregue às vontades de seu marido, mas que também vive cercada de luxo.
Os primeiros minutos do filme chamam atenção pela sequência na qual muitas empregadas se referem à Giulietta mas nós não podemos ver seu rosto.
É um exemplo de uma cena muito bem marcada, com a movimentação precisa tanto de atrizes quanto de câmeras – esse tipo de sequência se repete ao longo do filme, quase sempre acompanhada de um grande plano ou uma transição bem executada.
Fellini não poupou investimentos nos figurinos e na direção de arte: de longe, os mais extravagantes vistos até então. Créditos a Piero Gherardi, indicado ao Oscar por essas duas categorias.
Aliás, tudo nesta produção é extravagante. As imagens, as alegorias, as cores. Não sei se é porque estávamos acostumados a mergulhar num universo de texturas em branco-e-preto, mas quando o filme começa a rodar é quase como se o espectador passasse por alguns minutos de estranhamento e demorasse pra assimilar que vai ver algo colorido.
Isso também acontece com a atmosfera instaurada. Julieta dos Espíritos está classificado como comédia, mas é um filme tão maluco que não acredito que exista uma categoria para enquadrá-lo.
A história vai se desenvolvendo junto com a curiosidade de Giulietta que se utiliza do caminho torto pelo qual segue seu casamento para encontrar sua individualidade, seus desejos próprios, sua voz. Ela vai ganhando cores e perdendo sorrisos frouxos ao longo do filme.
A performance de Giulietta Masina é o que salva Julieta dos Espíritos. O filme é um sonho. Mesmo. Com um apanhado de referências bagunçadas, uma ou outra linha do tempo tentando fazer sentido, mas não tem sentido nenhum.
Tanto que Fellini acabou desagradando um pouco a crítica da época, que usou o argumento de que ele teria se repetido, já que 8 ½ também utiliza recursos de várias linhas temporais e metáforas para contar sua história.
Eu gosto quando as coisas não fazem sentido ou têm um sentido um pouco torto. Nós estamos acostumados a ver um filme, assistir a uma peça de teatro ou ir a uma exposição com o objetivo de entender alguma coisa.
E acabamos passando pela obra quase sem que ela tenha passado por nós. Por isso digo que é um filme surrealista. É um filme de sensações. Não tem como passar por ele sem, no mínimo, estranhar alguma coisa.
Giulietta salva este roteiro porque é uma grande atriz. Ponto. Porque é pelos olhos grandes e expressivos dela que a gente tem um termômetro do que tá fazendo sentido ou não, naquele universo.
É só porque vemos aquele corpo completamente desencaixado – nos padrões, no enredo, na relação com a família e com os vizinhos – que embarcamos na história e damos uma chance para descobrir, junto com a personagem Giulietta, tudo o que ela achava que tinha perdido.
Diferente, questionador, extravagante. Tal como seu diretor, Julieta dos Espíritos nos desafia. O streaming do Telecine oferece esse e outros longas do diretor e os 30 primeiros dias de acesso grátis.
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