Em todos os meus filmes, sempre foi vital lembrar os espectadores que eles não estão sozinhos, perdidos em um universo vazio, mas que eles estão conectados por inúmeros fios entre o passado e presente; que, de alguma maneira mística, todo ser humano percebe o relacionamento com o mundo e a própria vida humana. – Andrei Tarkovsky
Um homem em paz com a sua vida, com dinheiro que lhe dá segurança, uma família ao seu lado, sem muitas perturbações. É assim que somos apresentados ao personagem principal d’O Sacrifício (1986), último filme de Andrei Tarkovsky.
Mas, para podermos compreender a dimensão do trabalho final de Tarkovsky, devemos voltar um pouco.
Depois das filmagens de Stalker muitas pessoas da equipe de filmagem ficaram doentes, assim como os atores – Oleg Yankovsky faleceu em 2009, e muitos atribuíam essas enfermidades às localidades em que foi rodado o longa.
Andrei morreu seis meses após a estréia d’O Sacrifício, depois de completar a fotografia principal do filme ele ficou de cama devido ao câncer na garganta, e de lá concluiu todo o processo de pós-produção. O Sacrifício ganhou o Grande Prêmio Especial do Júri, Prêmio da Crítica Internacional, Prêmio pela Melhor Contribuição Artística e Prêmio do Júri Ecumênico em Cannes daquele ano, a primeira vez que um filme ganhou quatro prêmios em uma única edição.
O filme trata-se de uma fábula onde o homem que tudo tem se vê completamente desesperado diante da possibilidade da sua morte, como a de todos que ele ama.
Alexander (Erland Josephson) mora em uma ilha remota em algum lugar do mundo com sua família, o filho que tanto adora, sua esposa e a filha dela. Descobrimos que ele é jornalista e crítico literário em sua conversa inicial com Otto (Allan Edwall), o carteiro do vilarejo e que parece ter conhecimento sobre todas as coisas, e também ficamos sabendo que Alexander considera seu relacionamento com Deus inexistente.
Talvez seja esse o primeiro impacto do filme. Tarkovsky sempre fez questão de marcar suas obras pela sua religiosidade, nunca impositiva, mas sempre presente. Aqui vemos um homem completamente apático a Deus, ao espiritual. Um homem de conhecimento vasto, sem dúvida, mas seria isso o suficiente para se ter uma vida plena?
Com planos longos e uma câmera em travelling que passeia pelos cenários belíssimos escolhidos a dedo – O Sacrifício foi filmado perto da ilha de Faro onde Ingmar Bergman rodou vários de seus filmes e um cineasta que Tarkovsky sempre fez questão de exaltar – seguimos Alexander e sua família no dia de seu aniversário. Conversas sobre arrependimentos, rancores e amores perdidos permeiam a casa que foi construída especificamente para o filme.
Mas então a surpresa, com um tremor da terra vem a notícia na televisão, a 3º Guerra Mundial começou e nada mais pode ser feito.
Todos são tomados pelo desespero mas Adelaide (Susan Fleetwood), esposa de Alexander, tem um ataque de nervos a ponto de precisar ser sedada por Viktor (Sven Wollter), o médico amigo da família.
É nesse momento que Alexander se vê completamente desamparado e se ajoelha. Ele reza o Pai Nosso com a destreza de quem já havia feito aquela prece antes. Ele pede a Deus que poupe a sua família, o seu filho, que ele faria qualquer coisa para que o mundo voltasse a ser como antes. Ele abandonaria todas as coisas que tanto ama, seu dinheiro, sua casa, ele iria para longe, viveria sozinho e mudo.
Um ato de auto-penitência assim como em Andrei Rublev mas com a diferença que Andrei estava a procura do perdão de Deus por ter tirado a vida de um homem, mas Alexander está à procura do milagre. O homem que não tinha qualquer tipo de conexão com Deus quando acuado se vê recorrendo à única pessoa que ele dizia não conhecer.
Tarkovsky retrata aqui a decadência da humanidade que ele já havia previsto em Nostalgia. A falta de conexão com o espiritual, a necessidade de coisas materiais, uma vida perdida em cifras… De quê isso tudo serve na hora do juízo final?
Otto então diz a Alexander que existe um jeito de salvar o mundo, ele precisa dormir com Maria (Guðrún Gísladóttir).
Maria é uma das empregadas de Alexander e aparentemente uma bruxa. Seria então a junção do cristianismo e seu temor a Deus com uma parcela de paganismo que poderia salvar a todos nós? Ou então não necessariamente uma junção, mas a existência em conjunto das duas partes, em medidas iguais, que poderia pôr um fim a destruição?
Alexander vai até Maria e em mais uma cena belíssima eles consumam um ato de salvação. Quando Alexander acorda, já na sua casa, tudo está como era antes. As pessoas não parecem ter nenhum tipo de lembrança do dia anterior e só resta uma coisa a ser feita.
A conclusão catártica de O Sacrifício é uma cena longa e bem aberta da casa em chamas e todos os personagens ali, a observar o que acontece. Alexander sabia que teria que seguir com a sua palavra, ele pediu por um milagre e Deus o concedeu.
Algumas pessoas ao verem O Sacrifício podem sugerir que Alexander sonhou ou imaginou o ataque nuclear que iniciaria a 3º Guerra Mundial, mas na minha concepção, Tarkovsky está tentando nos mostrar como é viver uma vida sem algo a mais. Como é vazia uma vida que não passa desse plano físico, quando nos perdemos do que realmente importa para cada um de nós.
Tarkovsky nunca pregou sua religião. Ele sempre a manteve presente, um norte. A arte fazia parte da sua espiritualidade e era através dela que ele se comunicava com o público e com Deus. Ao dedicar esse filme ao seu filho, para mim, foi a sua maneira de pedir para que ele nunca perca essa conexão com a sua espiritualidade, seja como e qual for.
Pouco antes de sua morte, o diretor ganhou uma retrospectiva dos seus filmes em Moscou. Recebeu postumamente o Prêmio Lenin em 1990, uma das mais altas honras de Estado na União Soviética. Em 1989, o Prêmio Memorial Andrei Tarkovski foi estabelecido. Desde 1993, o Festival Internacional de Cinema de Moscou estabeleceu o prêmio Andrei Tarkovski.
Andrei Tarkovski não foi um homem fácil. Erudito mas temperamental, com uma visão muito clara do que queria fazer e onde queria chegar, chegou a brigar com seu operador de câmera de longa data e era extremamente rígido com seus atores. Teimoso a ponto de não escutar o seu diretor de fotografia em O Sacrifício – Sven Nykvist que também trabalhou com Ingmar Bergman – e não levar uma câmera extra para a filmagem da sequência final do filme com a casa em chamas. O resultado foi que a única câmera quebrou e não gravou a cena, e ela teve que ser inteiramente refilmada.
O cinema do diretor é repleto de cenas longas, diálogos carregados de referências, sonhos e memórias. Uma viagem íntima ao interior do ser humano com seus questionamentos, mas que nem sempre são apresentadas respostas.
Como eu disse no começo, Tarkovsky não existe para ser entendido e esmiuçado. É claro que isso faz parte e as pessoas irão atrás de partes tangíveis do seu trabalho para tentar justificá-lo. Mas, eu acredito que é importante deixar claro que Tarkovsky fazia seus filmes para que eles fossem sentidos, para que fossem experiências de imersão em situações que nos fizessem refletir não só sobre o que estamos vendo, mas sobre nós mesmos.
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