Por Joyce Pais
“No meu barraco a tristeza não mora, porque lá em cima é alegria toda hora…”
Há melhor maneira de começar um filme sobre favela do que com samba, uma das manifestações populares mais presentes na cultura do morro?
Com sua câmera, Coutinho adentra a realidade daqueles que vivem no enorme empilhado de casebres, exercendo o que considero um trabalho de jornalismo investigativo em sua mais profunda raiz. Antes de qualquer coisa, vejo sua obra como uma ‘prestação de serviço’, digamos assim, à sociedade, sobre os meandros da própria história do país. Sua obra vai além, extrapolando os limites do cinema.
Anos atrás, quando me preparava para prestar vestibular e aspirava a uma carreira jornalística, tive uma experiência muito marcante. Quando li o ‘clássico’ do jornalista Caco Barcelos, “Abusado – O Dono do Morro Santa Marta” tive o meu primeiro contato com aquele mundo, aquela favela, suas especificidades, seus moradores/personagens, tramas e dramas latentes. Foi natural que ao assistir Santa Marta – Duas Semanas no Morro eu o associasse a essa lembrança, foi natural, também, que novamente eu fosse arrebatada pela narrativa realista.
Produzido sob encomenda do Instituto Superior dos Estudos da Religião (ISER), para realizar o documentário Coutinho viveu por duas semanas no morro Santa Marta, em Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro, e acompanhou a rotina dos moradores, seus hábitos, o relacionamento com a polícia, sonhos e reivindicações.
Sua equipe colocou um aviso no morro dando a chance para quem quisesse partilhar histórias que tinham vivido de violência e discriminação. Partindo desse ponto, o filme se desenrola segundo os depoimentos das pessoas que seguem até o lugar combinado e começam a dar uma ideia de como é a vida naquele local. Além disso, o diretor fez entrevistas nas casas, becos e na associação que promovia o encontro de moradores, principalmente de jovens. Um dos momentos mais marcantes do filme, sem dúvidas, foi os relatos dos jovens acerca de suas (não) expectativas e planos para um futuro que já assumiam como causa perdida. Um dos garotos presentes viria a se tornar dono do morro Santa Marta e um dos traficantes mais famosos e procurados, Marcinho VP – história de vida sobre a qual gira em torno o já citado livro de Caco Barcellos. Marcinho ganhou notoriedade em 1996, quando negociou com o cineasta Spike Lee a gravação do videoclipe “They Don´t Care About Us” do Michael Jackson no morro.
Santa Marta – Duas Semanas no Morro é o primeiro documentário em vídeo de Coutinho. Ao todo foram captadas 23 horas de material, posteriormente editados por temas, blocos como violência, amor, racismo, machismo – uma metodologia muito comum em televisão. Segundo Coutinho, “quando você faz isso tende a usar os caras como peças e não como pessoas. É quase uma necessidade para montar bem e criar um painel. Você não tira a verdade do cara, mas o usa para seu tema”.
Filmar em um espaço restrito, a favela, na geografia espacial, tornou-se fundamental para a realização dos filmes, o que de imediato impõe determinadas linhas ao que vai ser filmado, acentuando o caráter das imagens a serem capturadas. É o princípio da “locação única”, do cinema coutiniano, que permite estabelecer relações complexas entre o singular de cada personagem, de cada situação e algo como um “estado de coisas” que vivemos hoje.
Em termos estéticos, em Santa Marta há a retomada de alguns procedimentos acionados em Cabra Marcado para Morrer (1984) como a presença da equipe em quadro e a exposição verbal das condições de filmagens. Adotando uma locução curta e direta, ele apenas introduz o propósito do documentário nos moldes do cinema direto norte-americano. É notável que muitas cenas do cotidiano da favela foram registradas com a câmera em recuo, capturando a vida em seu transcorrer, por meio de um olhar observacional. Em Santa Marta não houve pesquisa de personagem, o método foi adotado depois. Coutinho solicitava aos pesquisadores e assistentes de sua equipe, detalhados relatórios sobre as impressões que tiveram a respeito dos personagens que possivelmente entrariam no documentário, e discutia posteriormente cada um deles.
Cabra Marcado Para Morrer, Santa Marta – Duas Semanas no Morro e Boca de Lixo (1993) apontam indícios de uma mudança narrativa que iria marcar a terceira fase do trabalho de Coutinho, especificamente a prioridade ao relato das experiências de vida dos personagens em detrimento da abordagem de um tema com imagens dramáticas.
O cinema de Eduardo Coutinho é, desde sempre, um cinema da palavra filmada, que aposta nas possibilidades de narração dos seus próprios personagens”. – Consuelo Lins, em “O cinema de Eduardo Coutinho: uma arte do presente”.
Veja o vídeo: