Este especial dedicado ao cinema de Eduardo Coutinho vem percorrendo e analisando quase todos os longas assinados pelo diretor, no intuito de abarcar diversos pontos que consideramos essenciais de seu documentário. O recorte desses “momentos decisivos”, entretanto, não pode deixar de incluir outras realizações que, embora mais breves, se destacam por prefigurar dispositivos mais tarde muito cultivados por Coutinho.

Entre essas espécies de documentários-embriões, já vimos aqui o caso de O menino de Brodósqui (sobre o pintor Cândido Portinari), que foi feito para o Globo Repórter em 1980. Dois anos antes, Eduardo Coutinho realizara para o mesmo programa um média-metragem sobre o latifundiário então considerado como um dos últimos exemplares do coronelismo rural brasileiro: Theodorico Bezerra, que no título do filme ganhou o aposto preciso de “o imperador do sertão”.

O império sob mando de Theodorico, ou Major Theodorico, é uma extensa propriedade localizada no interior do Rio Grande do Norte. É lá, na Fazenda Irapuru, que o Major de 75 anos costuma passar parte dos dias da semana. Nos outros dias ele ocupa seu imóvel em Natal, onde participa de reuniões políticas com aliados do PSD (Partido Social Democrático) e da ARENA (Aliança Renovadora Nacional).

Euclides da Cunha, em determinado momento de Os sertões, escreve que os sertanejos lhe parecem mais estrangeiros que os europeus, pois “não no-los separa um mar, separam-no-los três séculos…”. Daqui a pouco, voltaremos a isso com mais cuidado. Agora vale dizer que devem ter tido sensação semelhante Coutinho e sua equipe (que incluía o fotógrafo Dib Lufti, famoso pela hábil câmera na mão de Terra em transe): o deslocamento por mais de mil quilômetros no espaço brasileiro parecia implicar também um percurso para outra temporalidade. A Fazenda Irapuru exemplifica quase que perfeitamente a descrição da sociedade nacional feita por Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala. Só que Gilberto Freyre estava olhando para o Brasil dos séculos XVI – XVIII.

Para o sociólogo, nossa formação teve como característica central o ruralismo quase feudal dos latifúndios. Ou seja, as propriedades rurais em geral continham seu próprio comércio, promoviam seus próprios festejos, possuíam normas próprias e abrigavam dentro delas outras instituições como escola e igreja. O lastro dessa autossuficiência fragmentada em inúmeros latifúndios privados representava um verdadeiro poder paralelo frente a tentativa de se estabelecer um estado nacional.

Pois bem, vejamos como essa moldura se acopla direitinho à Fazenda Irapuru.

Todos os trabalhadores da propriedade vivem em casas construídas lá mesmo. Em cada sala das moradias, há pendurado um quadro com as normas locais escritas, elencadas que nem mandamentos bíblicos. Além do quadro, os trabalhadores, quando são admitidos, recebem uma caderneta contendo as mesmas determinações que devem ser decoradas. Assim, ficamos sabendo que em Irapuru é proibido: tomar aguardente; andar armado; jogar baralho ou qualquer outro jogo; falar mal da vida alheia; fazer feira em outra localidade que não seja a própria fazenda; criar os filhos sem ensinar a ler e a escrever. A questão do ensino, vale dizer, se limita à educação básica. Theodorico conta que não é vantajoso oferecer estudos além disso, pois já mandou filhos de funcionários para cursos em Natal e eles não retornaram.

Cheio de princípios, como já pudemos perceber, o Major faz mais. Enfeita qualquer parede com inscrições de adágios diversos, como “Ninguém, até hoje, se imortalizou por ter sido preguiçoso” ou “Amigos são todos eles como aves de arribação: se faz bom tempo, eles veem… se faz mau tempo, eles vão”. Também quando abre a boca, é difícil ouvir dele algo sem cor proverbial, tipo “Quem planta e cria, tem alegria” e “Boa romaria faz quem em sua casa está em paz”, ou ainda “Meu princípio de viver: acordar cedo, andar ligeiro e conversar pouco”.

Essas e outras são ouvidas por seus funcionários semanalmente, durante o discurso dominical de Theodorico. Por meio de alto-falantes instalados em todo o vasto território da fazenda, sua voz ecoa conferindo-lhe aura quase divina. “Eu fui ao santo sepulcro, eu andei nas montanhas de Jericó, eu fui ao poço de Jacob…” ele professa durante um de seus discursos, se revestindo de poder celestial. Não por acaso, aos domingos a propriedade também realiza missas para os moradores locais.

Adornados em tom religioso, os discursos de domingo também se prestam a pedidos do patrão aos empregados. E tudo gira em torno de votos. De acordo com Theodorico, o voto é “a única coisa que eu peço a vocês, pois é a única coisa que vocês podem me dar”. Logo depois, o dono daquelas terras explica sobre a importância do alistamento eleitoral que ele mesmo faria em breve. É isso mesmo! Theodorico tiraria foto a foto de cada funcionário e depois entregaria cada título de eleitor olhando nos olhos de cada um como suplício – leia-se intimidação – por determinado voto naquela eleição de 1978. O método aparentemente dava resultado, visto que o Major fora eleito para quatro mandatos de deputado federal, um de deputado estadual e já ocupara o cargo de vice-governador.

O disparate só aumenta. Em outro pronunciamento, o patrão faz uma associação entre o sistema de vida da fazenda e o regime comunista. “Aqui vocês têm uma feira, não pagam imposto nenhum, não pagam aluguel, tudo é de graça para você. Esse é o nosso sistema”, e completa: “Somos aproximados do socialismo”.

A benevolência parece esbarrar, no entanto, quando o assunto é a previdência dos trabalhadores. “Não há motivo para a aposentadoria do povo inculto. A nossa origem aqui no Nordeste é do negro, do índio, do caboclo. Não é como a do sul, que é do alemão, do francês, do estrangeiro que tem uma compreensão mais alta”, diz o Major.

Esbarra ainda no pagamento de indenizações. Um dos funcionários de Irapuru perdeu um dedo ao manusear uma das máquinas da usina e a coisa ficou por aí: “Eu era de menor, aí não tive indenização. Não tinha nenhum registro aqui e ninguém falou nada”. O timbre resignado é ainda ouvido pela maior parte dos funcionários quando se referem a Theodorico e o sistema de trabalho próprio da fazenda. “Aqui estou bem” é uma frase que se repete em meio a elogios ao Major, e não é possível perceber os limites entre admiração mesmo ou puro medo, aprofundando a ambiguidade da relação senhor-empregados.

Diante desse desfile de absurdos ditos ou praticados no império de Theodorico, como se comporta Coutinho?

Ele faz justamente o que faria nas décadas seguintes dedicadas ao documentário, explicitando que a maior escola do gênero para ele foram aqueles anos de Globo Repórter. Faz nada. Ou melhor: tenta o tempo todo se manter numa independência de opiniões prévias que poderiam prejudicar a abertura à fala do outro, ainda que esse outro fosse tão radicalmente distante. Em outras palavras: Coutinho dá toda corda para que o próprio entrevistado se encarregue do próprio enroscamento. É o mesmo diretor que, tempos mais tarde, ouviria a moradora espanhola do Edifício Master (2002) falar que pobres são vagabundos e retrucaria somente com um “é mesmo?”, a fim de dar a chance de que aquele raciocínio demonstrasse as evidentes limitações por si mesmo. O mesmo Coutinho que, em Boca de Lixo (1992), perguntaria aos moradores do lixão se eles gostavam daquela vida. Ou que no derradeiro Últimas conversas (2015), ouviria com interesse o que adolescentes tinham a dizer sobre temas como amor e morte. A busca pela independência de opiniões prévias estaria desde então sempre presente. Coutinho parecia conhecer que, afinal, todo discurso que define um outro se sustenta inevitavelmente em uma relação de poder, e a isso ele tinha aversão. Não à toa, o cineasta chegou a dizer que “jamais entrevistaria um torturador, pois o acabaria entendendo”.

Com esse espírito, em determinada ocasião Coutinho pergunta a Theodorico por que o Major pensa que um homem pode ter várias mulheres e as mulheres não podem ter vários homens. A barbaridade da resposta se autoevidencia: “A natureza é clara e mostra isso em todos os seres. Eu crio galinhas e no chiqueiro tenho 10 galinhas e só um galo. No curral, eu tinha 20 vacas e um touro. Tenho 20 cabras, um bode. 10 ovelhas e um carneiro”. A cena torna-se ainda mais escabrosa em função do latifundiário expor isso no meio de uma sala cujas paredes são de cima a baixo forradas com fotos da revista Playboy.

Não fosse o método que evita julgamentos de Eduardo Coutinho esse tipo de pensamento se apresentaria de modo tão aberto?

A preocupação em não enredar Theodorico em discursos de antemão condenatórios permite que um lado mais humano do Major também se manifeste. Assim, nos últimos momentos do documentário, vemos o dono daquele império tombar em lágrimas quando fala da doença que paralisa a esposa. Um rei nu.

Lá atrás, fizemos alusão a como o deslocamento para aquele espaço do interior potiguar parece significar também um percurso para o pretérito, como Irapuru poderia ser um resquício de tempos passados, com seu sistema quase feudal de funcionamento. Será?

Influente na política regional, Theodorico costumava receber em Irapuru políticos de grande projeção. Até Juscelino Kubitschek já esteve por lá. Durante as filmagens do documentário, período que coincidiu com a corrida eleitoral de 1978, a aliança entre política e terra é evocada constantemente. Em certo momento, vemos o Major dividindo palanque com o então governador do Rio Grande do Norte, Tarcísio Maia. Pouco depois, aparece o ex-deputado Djalma Marinho, pessoa próxima ao Major, a quem descreve como “fazendeiro exemplar”.

De 1978 para cá, esses personagens parecem se perpetuar através de seus clãs políticos. Um sobrinho de Theodorico, Fernando Bezerra, foi senador do Rio Grande do Norte de 1995 até 2007 e chegou ainda a ser ministro no segundo governo FHC. Outro sobrinho, Iberê Bezerra, foi vice-governador e governador daquele estado entre 2007 e 2010. Djalma Marinho tem um neto que hoje ocupa o cargo de deputado federal, Rogério Marinho. Quanto a Tarcísio Maia, dele provém o galho de maior dispersão nacional. Seu filho José Agripino Maia está no quarto mandato de senador pelo Rio Grande do Norte, enquanto seu primo César Maia governou o Estado do Rio de Janeiro e é pai de Rodrigo Maia, atual presidente da Câmara dos Deputados.

Por vezes, pensamos estar num ponto à frente de uma imaginária linha do progresso, enquanto o que realmente parece acontecer é uma adaptação de um já desgastado modelo a novos cenários. Apenas “tinta nova em madeira velha”, como nos ensina a pena da galhofa de Machado de Assis.

Definitivamente, ainda hoje o Brasil não é muito longe dali.

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Assista ao filme completo: