Apesar de ser bastante popular, principalmente entre os jovens, o terror é tido até hoje como um gênero menor. Mesmo com filmes constantemente aclamados pela crítica, somente em casos muito extremos é que produções são realmente reconhecidas por instituições como a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, responsável pelo prêmio do Oscar. Um caso recente e muito lembrado é Corra! (2017) do diretor Jordan Peele, que inclusive levou o prêmio de Melhor Roteiro Original na premiação de 2018, além de também ter sido indicado em categorias importantes como ator, direção e melhor filme. Anteriormente outras produções foram lembradas pela Academia como O Bebê de Rosemary (1968), O Exorcista (1973), Tubarão (1975), Cisne Negro (2013), entre outros.

Tubarão

Tubarão (1974) teve quatro indicações ao Oscar, incluindo Melhor Filme, e levou três para casa.

Na década de 1990, um outro título marcou o gênero, a carreira de um grande ator e criou um ícone para a cultura pop: O Silêncio dos Inocentes (1991). Dirigido por Jonathan Demme, a produção teve sete indicações ao Oscar e faturou Melhor Roteiro Adaptado para Ted Tally, Melhor Atriz para Jodie Foster, Melhor Ator para Anthony Hopkins, Melhor Direção para Jonathan Demme e até Melhor Filme.

Na mesma década, não coincidentemente, diversos outros títulos com temática parecida com a do longa, no estilo “desvende as pistas e pegue o assassino”, se tornaram populares no cinema e principalmente nas locadoras.

Saem os monstros mascarados entram os aparentemente normais

Se atualmente os grandes sucessos comerciais estão relacionados à franquias das adaptações dos quadrinhos, a década de 1990 foi marcada pelos grandes astros. A nova comédia romântica de Meg Ryan ou Julia Roberts, o último filme de ação com Tom Cruise ou Keanu Reeves era o que levava as pessoas às salas de cinema. Como Hollywood é uma indústria milionária que busca o mínimo possível de erro, era, e ainda é arriscado relacionar esses grandes nomes chamarizes de público a um gênero “maldito” como o terror. Para tanto, as produções do gênero eram “travestidos” de “suspense policial” para buscar uma aceitação maior dos espectadores e minimizar as chances de uma debandada de venda de ingressos.

O Colecionador de Ossos

Angelina Jolie desvenda pistas em busca de um assassino em série em O Colecionador de Ossos (1999).

Junto de O Silêncio dos Inocentes que tinha, Anthony Hopkins e Jodie Foster, ainda temos outras produções como Seven – Os Sete Crimes Capitais (1995) com Brad Pitt e Morgan Freeman, Beijos que Matam (1997) com Ashley Judd e, mais uma vez, Morgan Freeman, O Colecionador de Ossos (1999) com Denzel Washington e Angelina Jolie, entre outros. Obviamente, nem tudo sai como o esperado e no meio existem diversos outros títulos que são apenas cópias baratas dos mais lembrados.

Mas onde está o terror?

A principal característica que aproxima esses filmes de um terror propriamente dito é a presença de um monstro. Quando falamos “monstro”, não estamos dizendo necessariamente de um ser asqueroso ou sobrenatural, mas sim um ser assustador à sua própria maneira e que destoa de um cidadão comum. Um bom exemplo de monstro e de um título que já foi citado aqui é o caso de O Bebê de Rosemary. O grande questionamento do longa é se Rosemary estaria ou não esperando um filho do diabo, então o monstro do filme seria algo ou alguém que ainda nem nasceu. É a gravidez da personagem que mais perturba a ordem natural dos acontecimentos.

O Bebê de Rosemary

Em O Bebê de Rosemary, o “monstro” está na sala, ou melhor, na barriga de Rosemary. A perturbação vem de alguém ou algo que ainda nem nasceu.

Diferente dos monstros da década de 1980, que foi marcada pelo terror slasher em que os assassinos eram reconhecidos por suas máscaras e viviam principalmente em lugares afastados e pequenas cidades, nos filmes dos anos 1990 o monstro é uma pessoa aparentemente comum que vive em meio a população dos grandes centros. Os protagonistas  são policiais e detetives que seguem as pistas deixadas pelo assassino para tentar impedi-lo de cometer novos crimes. Se nos slashers presenciamos as mortes quando elas ocorrem e a vítima tentando sobreviver, aqui assistimos aos policiais tentando entender de que forma os crimes foram cometidos e que elementos podem ajudar a identificar quem seria o monstro. Somos convidados a desvendar os crimes junto com os personagens.

O Silêncio dos Inocentes – Nasce um ícone da cultura pop

O longa O Silêncio dos Inocentes é baseado no livro homônimo do escritor Thomas Harris e lançado em 1988 e o segundo a contar com o personagem Hannibal Lecter. Na trama a agente do FBI em formação Clarice Starling (Foster) trabalha numa investigação para capturar o assassino em série conhecido como Buffalo Bill (Ted Levine), que assassina e arranca a pele de suas vítimas. Para entender a mente do assassino, a policial busca ajuda do psicopata e atualmente preso, Dr. Hannibal Lecter (Hopkins), acusado de canibalismo.

A história de gato e rato, têm como desenvolvimento três pontos: Starling buscando sua formação como agente do FBI, se dividindo entre os treinamentos da academia e desvendar o caso de Buffalo Bill; Hannibal auxiliando Starling a sua própria maneira, com charadas e jogos psicológicos, a encontrar o assassino em troca de melhores condições do seu encarceramento e Buffalo Bill em busca de novas vítimas para concluir seu grande plano. As interações entre esses três personagens serão os momentos que trarão as cenas mais memoráveis do longa.

O Silêncio dos Inocentes

Dr. Hannibal Lecter (Hopkins) e Clarice Starling (Foster) trabalham “juntos” para tentar capturar Buffalo Bill (Ted Levine). Apesar de não ser classificado oficialmente como terror, O Silêncio dos Inocentes é basicamente uma produção do gênero disfarçado de “filme sério” (por razões que já comentei anteriormente). Você tem a presença do monstro, que apesar de uma “aparência comum”, é um psicopata que mata mulheres, tira sua pele e joga seus corpos em um rio. Aliás, a sua “normalidade” é uma das armas que ele utiliza para atrair as suas vítimas.

Ainda que não vejamos os assassinatos, como é tradicional no terror, principalmente nos slashers que têm assassinos mais próximos aos que vemos aqui, as evidências, as fotos e demais provas, deixam claro que o monstro mata as mulheres com crueldade. Elemento importante para caracterizar um filme como terror. Em uma das cenas, bem marcante inclusive, Clarisse precisa analisar o corpo de uma das vítimas e podemos ver com mais detalhes o que o assassino em série fez com ela.

Outra cena marcante e que aproxima O Silêncio dos Inocentes do terror, é a que Hannibal consegue se soltar e atacar dois policiais que vigiavam a sua cela. O que até então só podíamos imaginar através de relatos de como o assassino agia, ganha forma visual nesse momento.

O Silêncio dos Inocentes

Hannibal ataca dois policiais na cadeia em O Silêncio dos Inocentes.

Apesar de Buffalo Bill ser o grande assassino misterioso do filme, o que ganhou grande destaque na cultura pop foi o personagem Dr. Hannibal Lecter. Ainda hoje é impossível olhar para Anthony Hopkins e não o relacionar com o serial killer (mesmo ao assistir ao recente Meu Pai (2020), ainda demora um pouquinho para termos um distanciamento entre o serial killer e idoso que sofre de Alzheimer).

“A atuação de Hopkins poderia ter desequilibrado o filme se ele estivesse presente por um tempo superior aos 16 minutos em que realmente aparece em tela. Sua ausência é mais do que compensada pelo assustador desempenho de Ted Levine como Jame ‘Buffalo Bill’ Gumb.” Ian Haydn Smith, em Tudo Sobre Cinema.

Sons e olhares que contam história.

Um dos elementos que torna O Silêncio dos Inocentes tão icônico é a direção precisa e imersiva de Jonathan Demme. Como a história é contada através dos planos é digno de nota. A personagem Clarice Starling tem planos que ajudam a demonstrar através de imagem como é a sua vida em um ambiente tão cheio de testosterona quanto a polícia. Em diversos momentos, desde a sequencia inicial, até quando ela precisa fazer a análise do corpo de uma vitima os quadros nos mostram a posição perante a polícia e, mais importante, como ela é vista pela maioria dos policiais como menor e, podemos dizer, até frágil.

“O interesse de (Jonathan) Demme por personagens femininas fortes, aparente em toda a sua carreira, é coroado aqui não apenas pelo desenvolvimento de Starling, mas também ao acentuar as dificuldades das mulheres no que ainda é percebido como um mundo dos homens” Ian Haydn Smith, em Tudo Sobre Cinema.

Nos momentos de investigação somos convocados a participar no quebra cabeça. Os personagens olham quase que diretamente para a lente da câmera nos convidando para raciocinar junto com eles. A imagem “chapada”, sem muita profundidade de campo, faz com que fiquemos sem saída, ali junto do personagem. Numa das cenas, Clarice e uma amiga de academia, Ardelia Mapp (Kasi Lemmons) tentam desvendar relatórios na pasta do caso, mais algumas pistas que Hannibal deu. As atrizes olham diretamente para a nós, público, nos convidando a raciocinar junto com elas.

O mesmo recurso é usado para aumentar a tensão com relação ao Hannibal. Em certos momentos, seu rosto ocupa a tela por completo. Os olhos fixos de Anthony Hopkins, quase sem piscar, nos fazem temer por nossas vidas. Em uma determinada parte do filme a câmera vai aproximando cada vez mais dos personagens que estão separados por uma grade a ponto de nos sentirmos como se ela não existisse. Nem para separar os dois, muito menos para nós espectadores.

Nos planos abaixo é possível ver que a grade que separa Clarice e Hannibal vai “desaparecendo” enquanto a conversa vai ficando mais intensa a ponto de ela nem existir mais. Nos dois últimos, os dois personagens estão cara a cara.

O horror ganha uma forma, ou melhor um som, a partir de um certo momento quando vemos uma vítima ainda viva gritar e clamar pela sua sobrevivência enquanto o assassino a observa do alto de um poço. O grito é um elemento importantíssimo no cinema de terror, por sublinhar exatamente o momento de desespero das vítimas. Inclusive, no gênero slasher surgem a partir da década de 1970 as chamadas scream queens. Atrizes como Jamie Lee Curtis, que frequentemente interpretavam as vítimas dos monstros e que precisavam gritar nos filmes. Enquanto isso, os vilões contam com uma voz mais grave, chegando até a ser gutural e ameaçadora. Nesta cena em particular, Buffalo Bill reage ao grito de sua vítima com um outro extremamente ameaçador e até com um tom de deboche da sua condição.

“Há uma razão cognitiva para que o grito tenha se tornado a mais reconhecível marca sonora do filme de horror: trata-se de um recurso narrativo simples e eficiente para estimular, nos membros da plateia, pelo menos parte do afeto do horror. O grito estimula a identificação afetiva entre o personagem-vítima e o espectador, gerando o sentimento de repulsa ou rejeição que é elemento central na construção do sentimento do horror. Daí a atenção especial dedicada a esse elemento sonoro pelos cineastas do gênero.” Trecho de Sobre o som no cinema de horror: padrões recorrentes de estilo, de Rodrigo Carreiro

Hannibal para além de O Silêncio dos Inocentes

Assim como nos livros de Thomas Harris, o personagem Dr. Hannibal Lecter teve outras encarnações e, por incrível que pareça, Anthony Hopkins não foi o primeiro a interpretá-lo. A primeira adaptação de um livro com o personagem foi em Manhunter – Caçador de Assassino (1986), em que Lecter foi interpretado por Brian Cox, com direção de Michael Mann baseado no livro Dragão Vermelho, de 1981. Depois do sucesso de O Silêncio dos Inocentes, Hopkins interpretou o personagem mais duas vezes: em Hannibal (2001), a partir do livro de mesmo nome e que mostra os eventos após o primeiro filme e em Dragão Vermelho (2002), também baseado no livro homônimo e que mostra como o canibal foi preso e outros eventos ocorridos antes do primeiro filme. Também houve uma versão jovem do personagem em Hannibal – A Origem do Mal (2007) em que o escritor, baseado em seu próprio livro, foi o roteirista do longa.

Ainda nos anos 1990 Hannibal apareceu na paródia de filmes de policial Máquina Quase Mortífera (1993) interpretado por F. Murray Abraham. E o próprio Silêncio dos Inocentes tem uma paródia chamada Loucos, Birutas e Debilóides (1994) em que o protagonista, interpretado por Billy Zane, tem nome de Jo Dee Foster e sai Hannibal Lecter e entra Dr. Animal Cannibal Pizza, interpretado por Dom DeLuise.

O Dr. Lecter também ganhou uma série de TV chamada Hannibal (2013 – 2015) em que o personagem é interpretado pelo ator Mads Mikkelsen e que os fãs clamam até hoje por uma continuação. Ah, e falando em TV, obviamente tem as infinitas citações em outros ícones da cultura pop como Family Guy ou Os Simpsons.

Trinta anos depois, O Silencio dos Inocentes ainda faz muito barulho.

Anthony Hopkins e Jodie Foster em 2009, em um ensaio para a edição comemorativa de 20 anos da revista especializada em cinema Empire.

Mais de três décadas depois de seu lançamento, O Silêncio dos Inocentes ainda sobrevive como um dos melhores títulos de suspense / horror de todos os tempos. Quanto à década de 1990, talvez esteja competindo de igual com Seven. É um daqueles filmes que quem nunca assistiu, quando assiste, se pergunta o motivo de ter demorado tanto tempo para poder conhecer esse universo. Inclusive, esse texto foi pensado tentando evitar o máximo possível de spoilers (mesmo a produção tendo mais de trinta anos) para instigar quem ainda não conhece a obra.

As demais produções também são interessantes, cada um com seu próprio mérito. Hannibal, por exemplo, tem uma cena de jantar que é de embrulhar o estômago. E Dragão Vermelho, apesar de ter um enredo bem parecido com o de O Silêncio, ainda consegue nos surpreender e despertar esse instinto investigativo como no que discutimos aqui. Bom, a dica é seguir a ordem de lançamento dos filmes, mas já adianto que O Silêncio dos Inocentes, na minha humilde opinião, ainda é o melhor de todos, mas a sugestão é: assista a todos e tire suas próprias conclusões. Hannibal vai adorar a companhia.

Navegue por nossos conteúdos

CONECTE-SE COM O CINEMASCOPE

Gostou desse conteúdo? Compartilhe com seus amigos que amam cinema. Aproveite e siga-nos no Facebook, Instagram, YouTube, Twitter e Spotify.

DESVENDE O MUNDO DO CINEMA

A Plataforma de Cursos do Cinemascope ajuda você a ampliar seus conhecimentos na sétima arte.