Estava eu captando filmes para um festival de cinema fantástico no mês de setembro de 2020, quando a distribuidora Visit Films, me enviou um link para assistir Feels Good Man. Em meio a dezenas de filmes de horror que chegaram até mim, este foi o mais assustador, mais impactante, e que me causou maior incômodo. Detalhe: é um documentário sobre um personagem de um meme.

Em resumo, Matt Furie, o criador de um personagem recorrente na internet, o sapo Pepe, trava uma batalha contra o uso indevido do seu personagem na internet, como se este tivesse ganhado vida própria e se tornado símbolo de ódio.

Àquele momento, o filme não havia sido lançado oficialmente, era inédito no brasil (sua primeira exibição aqui foi na Mostra Internacional de São Paulo, em 22 de outubro), e já pintava um cenário para as eleições presidenciais nos EUA que estavam por vir. Minha vontade era de contar para todos sobre este filme, discutir, ouvir opiniões de sociólogos e cientistas políticos, mas tive de me conter. Hoje não há porque me segurar, pois o circo está pegando fogo neste exato momento, tanto para nós, quanto para nossos vizinhos no hemisfério norte, e nós somos os palhaços. Recomendo que você procure este filme e o veja com seus próprios olhos, e mesmo se não viu, ainda assim vale apena ler este texto.

O QUE É UM MEME?

Com certeza você já viu um meme em algum site, já compartilhou um, antes mesmo de saber que aquilo é um “meme”. Mas afinal, o que é isso?

Esse termo surgiu com o geneticista Richard Dawkins, que em seu livro de estreia, O Gene Egoísta (1976), dedica um capítulo inteiro para explicar este conceito, que consiste numa unidade de informação, transmissão cultural, que pode ser replicada. Ele exemplifica isso com o canto dos pássaros, relativo à linguagem destes, um filhote precisa aprender com um adulto, e o padrão de canto é característico desta espécie e daquele território – no meu texto anterior sobre Blackfish (2013), há uma passagem que falo sobre como uma orca, Orky II, não se comunicava com outras da mesma espécie, justamente porque elas possuíam vocalizações diferentes – Dawkins faz uma analogia entre a evolução cultural, e a evolução genética.

 

“Tal como os genes se propagam no pool gênico saltando de corpo para corpo através dos espermatozoides ou dos óvulos, os memes também se propagam no pool de memes saltando de cérebro para cérebro através de um processo que, num sentido amplo, pode ser chamado de imitação. Se um cientista ouve ou lê sobre uma boa ideia, transmite-a aos seus colegas e alunos. Ele a menciona nos seus artigos e nas suas palestras. Se a ideia pegar, pode-se dizer que ela propaga a si mesma, espalhando-se de cérebro para cérebro.” (DAWKINS, 1976, p. 330)

 

Então basicamente é uma ideia que se propaga, uma receita culinária, um slogan, um jingle, um dito popular, e a Internet se tornou uma ferramenta ideal para a transmissão de ideias, basta uma imagem concisa, por exemplo, uma foto de uma Ilha Artificial de Dubai e outra do Giorgio Tsoukalos ao lado para absorvermos a ideia “as Ilhas foram construídas por Aliens!”. O próprio conceito de Deus seria um meme, mas não vamos entrar nesta questão agora.

Não precisa de legendas. As imagens falam por si.

 

COMO PEPE NASCEU

Bem, antes de apresentar o personagem que instaurou o caos, vamos conhecer seu criador: Matt Furie, ilustrador de São Francisco, cara comum, aos 20 anos trabalhava num brechó na sessão de brinquedos e nas horas vagas gostava de desenhar este personagem recorrente, um sapo. Matt aproveitou para utilizar o personagem numa HQ que ele criara, chamada Playtime, e mais tarde novos personagens foram introduzidos e a revista fora rebatizada de Boy’s Club, um humor bem adolescente, piadas escatológicas. Seus amigos adoravam, pessoas nas convenções de quadrinhos adoravam, cartunistas renomados adoravam, todos adoravam.

Matt se inspirava em si próprio e às vezes em seus amigos para criar suas tirinhas, como quando ele era criança, e foi ao banheiro sem perceber que seu primo já estava lá, e ao abrir a porta se deparou com ele urinando com as calças e cuecas abaixadas até o chão, ele achou que deveria ser uma sensação boa, e decidiu colocar isso nas suas tirinhas. Quando pensou nisso, ele estava desenhando na casa de sua namorada, Aiyana Udesen, e pediu para que ela ficasse em frente ao vaso sanitário, se curvasse e abaixasse as calças, pois ele queria desenhar o Pepe naquela posição, e a usaria como referência.

Naquela época não havia as redes sociais e a tecnologia que temos hoje, se um artista queria mostrar seu trabalho, ele teria de escanear e postar uma imagem no MySpace. Bem, na verdade as coisas não eram tão diferentes assim, sou da época dos Fotologs e nessas plataformas também havia pessoas que as usavam para se exibir, moças postavam selfies (era um termo novo) fazendo biquinho, ou fotos de comidas, e também havia caras que mostravam o seu antes/depois da malhação, com o texto “Feels good, man”. E de repente essa frase passou a ser replicada, cada vez mais presente, com outros contextos, coisas simples como um cão com a cabeça para fora da janela de um carro em movimento. E isso ilustra bem o conceito de meme explicado alguns parágrafos atrás.

Pepe também foi utilizado por outras pessoas em outros contextos, mas nada muito grave, Matt foi encorajado a abrir um processo contra o uso de seu personagem sem sua autorização, mas ele preferiu deixar isso de lado, pois se sentia mal em processar outros artistas.

4CHAN: A UM PASSO DA DEEP WEB

O Art. 5º inciso IV da Constituição Federal estabelece que “É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato.” É o que nos permite identificar aqueles que levantam calúnia, ofensas, ou simplesmente expressam atos ofensivos e criminosos. O mesmo princípio se aplica na Internet, estabelecido no Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14). Porém, há um território onde essa lei parece não se aplicar: o 4chan.

Esta plataforma foi criada por Christopher Poole quando este tinha 14 anos. O 4chan permite que você faça uma publicação anônima, e se esta publicação for muito replicada, ela se torna mais evidente, se não for, ela simplesmente cai no esquecimento e desaparece. Usuários desta plataforma começaram a usa-la como uma competição, para ver quem apareceria em evidência – se pararmos pra pensar, toda rede social é basicamente isso, você briga por atenção – o que acontece é que as postagens mais ofensivas acabavam sendo as mais replicadas. O fato de o 4chan permitir o anonimato deu autonomia para as pessoas expressarem seus mais profundos pensamentos. Não sou muito fã da revista Superinteressante, mas acho que vale a pena ler essa matéria para entender o potencial desta plataforma. E também não sou jurista, mas vejo aqui uma quebra ao que é dito na Constituição.

Ser um 4channer, ou um “anão”, se tornou um estilo de vida, até foi criado um nome para descrever a situação do seu público: NEET (Not in Edocation Employment or Training, traduzindo de maneira livre seria Não Estuda, Exercita ou Trabalha), eu conhecia este tipo de pessoas como Nem (Nem estuda, Nem trabalha), ou VASP (Vagabundo Anônimo Sustentado pelo Pai). Pepe foi abraçado por estes VASPs, que na maioria das vezes não conheciam seu criador, Matt Furie, ou a HQ do Boy’s Club, e como Pepe nada mais é do que uma casca vazia, as pessoas projetaram suas próprias tristezas no personagem, o sapo que foi criado como um personagem “de boa”, passou a ser um sapo triste para refletir as emoções dos seus replicadores.

 

Neste ponto o documentário introduz Mills, reflexo da maioria dos usuários do 4chan, VASP, uma pessoa rejeitada pela sociedade, mentalmente perturbado, e que pelo que é mostrado no filme, se orgulha de ser um 4channer – eu diria que ele é o Paulo Kogos dos EUA – e conhecendo este tipo de pessoa, você entende por que elas são assim, a psicóloga Dra. Aleks Krotoski explica que para boa parte da população, não temos permissão para expressar tristeza ou dor, eis que surge o Pepe triste para canalizar esse pesar. Faça um exercício, passe um minuto na sua rede social, seja ela o Instagram, Facebook ou Twitter, Tik Tok, e você verá uma explosão de positividade, pessoas em bar, num ponto turístico, mulheres de biquíni na beira de uma piscina, mulheres postando dicas de maquiagem, pessoas dançando em lugares aleatórios, pessoas completamente alheias ao fato de que AINDA ESTAMOS NUMA PANDEMIA, e que o brasil está um verdadeiro caos! E a partir do momento em que essas plataformas permitem que as pessoas ganhem dinheiro, a imagem de positividade se tornou um produto. Pepe triste foi abraçado pelo extremo oposto deste grupo, e conseguiu furar a bolha ao ser compartilhado por ídolos adolescentes como Nicki Minaj e Katy Perry, ele estava em todos os lugares.

 

F*CK NORMIES

Na internet as coisas simplesmente surgem do nada e viram fenômeno, um desses fenômenos foram os vídeos de sapos gritando.

Este grito passou a ser interpretado como aquele grito que você conteve durante muitos anos de frustrações, como o próprio Mills explica, ver normies (normais), pessoas bem ajustadas no Instagram, cuja imagem de “vida perfeita” parece dizer: “veja o quanto eu sou superior a você”, e a resposta para isso é justamente um grito de frustrações acumuladas, “f*dam-se, normies”, este fenômeno passou a ser a nova evolução natural do meme, e afetou um grupo específico de homens que se sentiam desempoderados, que buscavam abrigo no fantástico mundo da internet, como o Dale Beran (autor de It Came from Something Awfulexplica, “o que esse grupo não queria era ter uma mulher, pois isso seria um símbolo da sua derrota na vida real” – me lembra do Tyler Durden ao dizer “me pergunto se uma mulher é a resposta do que eu preciso” – então nós temos uma geração de homens que se sentem intimidados por terem uma mulher ocupando o espaço de chefe da família, ou uma posição de destaque no mercado de trabalho, não posso afirmar com certeza, mas me parece estar totalmente relacionado com o conteúdo do livro Angry White Man.

 

SÓ É ENGRAÇADO ATÉ ALGUÉM MORRER

De volta à toxicidade da internet, as coisas pareciam seguir seu curso natural, porém quando usuários do 4chan sentiam que normies usavam seus memes, eles respondiam de forma mais agressiva, ofensiva, ultrapassando os limites éticos, a ironia dos memes cedeu espaço para apologias ao nazismo, piadas sobre o ataque às Torres Gêmeas, neste contexto Pepe passou a ser desenhado com um sorriso misterioso, ambíguo, como se ele estivesse fazendo algo terrível, mas seu sorriso dizia que é apenas uma piada. Será?

Em 23 de maio de 2014, em Isla Vista na Califórnia, um jovem de 22 anos, Elliot Rodger atirou e matou sete pessoas num tiroteio. Eliot foi abatido no ato, e logo em seguida as pessoas começaram a investigar seu passado, suas postagens, alguns o trataram com respeito no 4chan, como se ele tivesse se vingado de todos os normies, o próprio Mills (o representante dessa comunidade no filme) reconhece que Eliot Rodger o levou a ser quem ele é – isso me lembra meu texto sobre O Chamado, quando menciono o suicídio de Rina Palenkova que foi glorificado por usuários de uma rede social restrita ao país.

Num cenário normal isso seria um motivo para parar e recuar, mas não no 4chan, este evento desencadeou o Beta Male Uprising (Insurreição do Macho Beta, interessante como eles reconhecem a posição inferior ao alfa, e como novamente excluem o sexo feminino), cuja ideia principal era de que todos os NEETs sairiam dos porões da casa de sua mãe e começariam um tiroteio contra as pessoas, contra os normies. Pepe se tornou o símbolo deste movimente, ele sempre aparecia segurando uma arma.

E realmente aconteceu, alguns desajustados realmente saíram atirando a esmo em pessoas inocentes, como pode ser lido nessa matéria do UOL de 2015, 16 anos após o massacre de Columbine, que chocou o mundo. Neste caso de Oregon, o autor do massacre fez postagens no 4chan usando o avatar do Pepe segurando uma arma. E se você acha que isso é algo distante da nossa realidade brasileira, basta lembrar do massacre em Suzano, 13 de março de 2019, onde um dos atiradores, Guilherme Taucci Monteiro de 17 anos, apoiava pautas defendidas pelo presidente recém eleito Jair Bolsonaro, como pode ser lido nesta matéria da Revista Época.

Exemplo de uma das postagens de um membro desse grupo de extremistas. Sua mensagem diz: Alguns de vocês são legais. Não vão à escola amanhã. Se vocês estiverem no noroeste. Threads dos acontecimentos serão postadas amanhã de manhã. Até mais, robôs.
Nas respostas lemos: A insurreição beta finalmente está acontecendo? Talvez você deva relaxar e não alertar a polícia; Ou você me mata, ou os meus pais. Estarei aguardando; Eu moro na região noroeste mas eu tenho 28 anos e não vou ao colégio comunitário. Seattle ou Portland? Estarei vendo os noticiários.

Neste momento, o leitor mais reacionário deve estar me xingando de todos os nomes possíveis e argumentando que “não é o meme que gera violência”. Exatamente, não é, o problema é que a violência está se tornando um meme. É como normatizar mil mortos por dia, ou normatizar violência dos policiais ou seguranças contra negros, mas ainda tem muita água pra rolar antes de eu aprofundar neste assunto.

 

PEPE PRESUNÇOSO

Uma nova faceta do Pepe surgiu na internet, apoiando o queixo com o dedo, como se fosse um sorriso de vitória sobre os normies, se deleitando do sofrimento de terceiros. E eis que Pepe ganha um novo amigo, Donald Trump, uma personificação desta faceta do Pepe, que naquele momento acabara de anunciar sua candidatura à presidência. Inicialmente ninguém dava crédito a ele, ele era um outsider, mas aos poucos as pessoas passaram a ver nos seus discursos temas com os quais se identificavam, como “nacionalismo”, melhor dizendo, “nacionalismo branco”.

Estamos em 2021, e já sabemos como a história se desenrolou, mas vale lembrar que ninguém acreditava que Trump poderia vencer aquela eleição, como você pode ler neste artigo publicado em 23 de novembro de 2015. E como Steven Levitsky e Daniel Ziblatt explicam em seu livro Como as Democracias Morrem, em momentos de crise econômica ou insatisfação popular, surge um outsider carismático que desafia a velha ordem, os políticos do establishment tentam cooptá-lo para que este outsider possa apoia-los futuramente, acreditando que ele poderia ser controlado mais tarde.

Trump era este cara, alguém fora do mundo político que sempre vinha com frases provocativas (aqui no brasil se dizem “lacradoras”), exatamente o que se via no 4chan, bastava ele dizer que iria construir um muro para barrar mexicanos que o espírito “nacionalista” aflorava nas pessoas. NEETs criaram e replicaram um grande volume de memes com Donald Trump com o intuito de compartilha-los com os normies, ou melhor, com pessoas fora do universo tóxico do 4chan, para motivá-los a apoiá-lo em sua candidatura, esta ficou conhecida como a Grande Guerra dos Memes, “vamos memetizar Trump ao poder” eles diziam. E quando o próprio Donald Trump comprou a “piada” e compartilhou uma imagem de si mesmo caracterizado de Pepe presunçoso, a internet veio abaixo.

Muitos dos eleitores alheios à situação ficaram simplesmente confusos, mas para aqueles que faziam parte da comunidade do 4chan, do Beta Male Uprising, aquilo foi um sinal, um dog whistle, que consiste numa mensagem política empregando linguagem em código que parece significar uma coisa para a população em geral, mas tem um significado mais específico e diferente para um subgrupo-alvo, melhor explicado e com exemplos por este vídeo do canal Meteoro, que você pode ver a seguir, mas só se você quiser:

 

SPEECH BOMB

Como disse anteriormente, Trump sinalizara para grupos extremistas, mas somente este grupo entendera o recado. Outro momento em que isto aconteceu durante a campanha presidencial daquele ano foi quando num discurso da concorrente Hillary Clinton alguém simplesmente grita “PEPEEEE!” aparentemente sem motivo algum.

A interrupção deste e de outros discursos da candidata foram uma ação orquestrada no 4chan, e novamente, quem não conhecia o sapo Pepe, ou a ideologia por trás do meme, ficaria completamente perdido. Pepe não era mais um inocente sapinho, ele se tornara um símbolo dos supremacistas brancos.

 

ESTUDO DE CASO, BETO DE VILA SÉSAMO, UM SÍMBOLO TERRORISTA

Não estava na minha pauta, mas irei transcrever um trecho do livro Cultura da Convergência (Henry Jenkins) que aponta para uma situação parecida com o que o criador Matt Furie e sua criação Pepe vivenciam.

 

A história circulou no outono de 2001: Dino Ignacio, estudante secundarista filipino-americano, criou no Photoshop uma colagem do Beto de Vila Sésamo (1970) interagindo com o líder terrorista Osama bin Laden, como parte de uma série de imagens “Beto é do Mal”, que ele postou em sua página na internet. Outras mostravam Beto como membro da Ku Kux Klan, ao lado de Hitler, vestido como o Unabomber, ou transando com Pamela Anderson. Era tudo brincadeira.

Logo após o 11 de Setembro, um editor de Bangladesh procurou na internet imagens de Bin Laden para imprimir cartazes, camisetas e pôsteres antiamericanos. Vila Sésamo é exibida no Paquistão num formato adaptado; o mundo árabe, portanto, não conhecia Beto e Ênio. O editor talvez não tenha reconhecido Beto, mas deve ter pensado que a imagem era um bom retrato do líder da Al-Qaeda. A imagem acabou em uma colagem de fotografias similares que foi impressa em milhares de pôsteres e distribuída em todo o Oriente Médio.

Repórteres da CNN registraram a improvável cena de uma multidão enfurecida marchando em passeatas pelas ruas, gritando slogans antiamericanos e agitando cartazes com Beto e Bin Laden.

Representantes do Children’s Television Workshop, criadores do programa Vila Sésamo, descobriram a imagem da CNN e ameaçaram tomar medidas legais: “Estamos ultrajados por nosso personagem ter sido usado de maneira tão infeliz e ofensiva. As pessoas responsáveis por isso deveriam se envergonhar. Estamos avaliando todos os recursos legais para impedir esse abuso e qualquer abuso semelhante no futuro”. Não ficou totalmente claro a quem eles planejavam direcionar seus advogados – o jovem que inicialmente se apropriou das imagens ou os simpatizantes do terrorista que as utilizaram. Para completar, fãs que se divertiram com a situação produziram novos sites ligando vários personagens de Vila Sésamo a terroristas.

De seu quarto, Ignacio desencadeou uma controvérsia internacional. Suas imagens cruzaram o mundo, algumas vezes veiculadas por meios comerciais, outras, por meios alternativos. E, no final, inspirou seguidores de sua própria seita. Com sua popularidade crescendo, Ignacio ficou preocupado e finalmente decidiu tirar seu site do ar: “Acho que tudo isso chegou perto demais da realidade… ‘Beto é do Mal’ e seus seguidores sempre estiveram controlados, longe dos grandes meios de comunicação. Essa questão os trouxe ao conhecimento público”.

(JENKINS, 2006, p. 25-27)

 

 

A EXTREMA DIREITA E AS TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO DE SUPERIORIDADE

Se Ignacio não tivesse retirado seu site do ar, Beto poderia ter tomado o mesmo rumo de Pepe, eu acredito que estariam em lados opostos, uma vez que o Beto do mal era antiamericano e o Pepe distorcido representava os ideais “nacionalistas” dos americanos, contra qualquer outro grupo étnico que não fosse o tradicional homem branco defendido pela extrema direita. Quero destacar a fala de Adam Serwer (jornalista da revista The Atlantic) para o documentário sobre essa questão: “Definir a extrema-direita é mais fácil hoje em dia. Mas por volta de 2016, ela abrangia muitas pessoas que eram ideologicamente opostas à esquerda política, mas não necessariamente unidos em todas as questões. […] Mas o Pepe da extrema-direita permite que eles finjam que estavam apenas brincando. Eles não estão brincando. O que eles querem é que você se sinta ameaçado e com medo e seja caçoado por ter ficado com medo. O objetivo é causar um tipo de angústia psíquica e eles conseguem extrair prazer disso.” Se você ainda está na dúvida, a seguinte imagem retirada do documentário ilustra cada um dos traços da extrema direita:

Além de ter sido definido sistematicamente o que é a extrema-direita, o chefe da campanha de Trump, Steve Bannon, joga mais lenha na fogueira ao dizer que “os Democratas não são o partido de oposição, a mídia é o partido de oposição. E para combater a mídia, você inunda a zona com merda.” Basicamente “inundar a zona com merda” consiste em inundar a mídia com informações até que chegue num ponto em que você não consegue distinguir o que é verdade do que é falso – soa familiar para nós brasileiros? – e uma dessas figuras que ajuda a inundar a zona de merda é Alex Jones, um apresentador de rádio que dissimula todo tipo de teoria da conspiração (falaremos mais dele adiante). Tudo isso contribui para difundir a versão da “verdade” aos olhos de Trump. A versão distorcida de Trump e seus apoiadores consiste em classificar as pessoas numa hierarquia social (com os brancos no topo dessa hierarquia, é claro), e para quem estava abaixo a única forma de chegar ao topo dessa cadeia seria trapaceando, tomando o lugar de outro, e isso está a apenas um passo do pensamento contra o sistema de cotas, com certeza você que está lendo esse texto conhece alguém que diz que não voaria num avião pilotado por um cotista, ou alguém que tenha votado em alguém que pense assim. A verdade é que não basta ser branco para estar no topo da hierarquia, há muitos brancos pés-rapados lá nos EUA como aqui no brasil, toda essa propaganda acaba implantando nessas pessoas a ideia de que se eles (os brancos pés-rapados) não estão no topo, é porque está sendo ocupado por alguém que deveria estar abaixo na hierarquia, que provavelmente trapaceou para chegar lá, e daí nasce o ódio contra as minorias que chegaram ao topo, tal como Barack Obama que era o presidente no ano corrente.

De frustração, esse discurso passa a ficar cada vez mais próximo de uma teoria da conspiração de que supostamente a mídia é controlada por judeus; que os brancos só não ascendem na vida por causa dos imigrantes; A solução para quem acredita nessas teorias da conspiração é a proposta de Trump: Construir um muro. Eu já declarei minha opinião sobre isso no meu texto sobre Até Que A Sbørnia Nos Separe (2013) que publiquei em 2017.

Traçando um paralelo com o brasil, essa teoria da conspiração de que a mídia é controlada por judeus não enfurece a ralé branca, pois aqui temos um canal, SBT, comandado por pessoas de descendência judia como Silvio Santos favorável ao presidente, e além dele há outras figuras notórias como Luciano Huck, Roberto Justus, Pedro Bial, Boris Casoy, todos esses citados flertam com a direita brasileira, portanto é preciso encontrar outro inimigo: Os comunistas. Veja um trecho de uma palestra/propaganda em que o ex-ministro da falta de educação Weintraub diz quem são os “inimigos”. OBS: o próprio Weintraub já disse em seu Twitter que seu avô era judeu nascido na Polônia, portanto ele jamais iria repetir o que os americanos propagavam.

E se os white-trash dos EUA achavam que Trump iria corrigir a tal injustiça social defendida no 4chan, aqui no brasil, pessoas da mesma laia se identificavam com esse discurso:

 

PEPE É DENUNCIADO POR ANTISSEMITISMO

Durante aquele período eleitoral, Hillary Clinton era constantemente atacada por seguidores de Trump e assombrada por Pepe, assombrada literalmente, pois os 4channers chegaram a fazer mandingas para que ela adoecesse. A então candidata veio a público denunciar apoiadores de Trump e Pepe, comparando-os a grupos neonazistas e antissemitas. Essa jogada foi quase um tiro no próprio pé, pois muitos achavam que ela estava agindo como louca, atacando um personagem ilustrado, e outros tomaram o ataque para si próprios, “Hillary chamou o Pepe de nazista, se eu gosto do Pepe, quer dizer que eu sou nazista?” isso fez com que muitos que ainda não haviam se posicionado, manifestassem seu apoio ao Pepe, ou melhor, aos neonazistas.

Pepe fora denunciado como neonazista, e é claro essa denúncia veio acompanhada do nome de seu criador Matt Furie, que ficou devastado com essa notícia. Matt que criara uma linha de camisetas estampando o rosto de Pepe (antes de o personagem ser um símbolo adotado por supremacistas brancos), agora se arrependera desta ideia, caixas e mais caixas de camisetas ficaram atoladas numa garagem, doá-las seria o equivalente a propagar um símbolo de ódio. O que Matt fez foi se unir à ADL (Anti-Defamation League, a própria organização que o atribuíra ao antissemitismo propagado por Pepe) para fazer palestras com a campanha para salvar o personagem, o objetivo era incentivar os artistas a desenharem Pepe de forma positiva e compartilhar nas redes sociais com a #savepepe.

(à esquerda) o anúncio de Matt para sua campanha; (à direita) um exemplo de uma arte que foi enviada para a campanha.

Houve engajamento nesta campanha, mas na internet o ódio se propaga com maior veemência. 4channers frequentemente distorciam as imagens do Pepe positivo, rebaixavam-no ao seu nível. Diante disso, Matt decidira matar seu personagem, ele criaria uma tirinha onde o personagem seria velado num caixão e a publicaria, quase como o que Angeli fez ao matar a Rê Bordosa, porém enquanto o cartunista brasileiro tivera êxito, Matt falhara, o que morreu foi o personagem que Matt criara, porém o Pepe antissemita não era o mesmo sapo, ele continuava vivo e bem das pernas.

 

PEPE E PEDE

Então, depois de ter sua criação sendo usada para promover ódio, eleger Donald Trump, arrancar dinheiro de milionários das ações com os Pepe Cahs, o que poderia faltar nessa equação? Alguém decide lançar um livro infantil com conteúdo racista e islamofóbico a ser lançado na Amazon, o livro infantil contava com um personagem inspirado em Pepe.

Pelo que eu entendi a partir desta reportagem e de outras informações prévias, o livro é cheio de referências ao cenário político daquela época, o autor, Eric Hauser, dedicou este livro aos seus companheiros centopeias, um dos protagonistas do livro é uma centopeia, e é assim que os apoiadores de Trump se auto denominam; outras referências incluem Kek Cliff (despenhadeiro Kek), a internet descobrira um deus egípcio com cabeça de sapo chamado Kek, e de repente todos passaram a adotar essa terminologia como uma risada, “kek kek kek”, e criar um Kekhistão; a Fazenda Washington; foram usados termos como “drenar o pântano” presentes no vocabulário de Trump; e o vilão da história é um jacaré barbudo lembrando um muçulmano, cercado de seus minions de cor rosa, cobertos de lama, deixando apenas os olhos à mostra, como burcas; e o objetivo de Pepe e Pede eram “tornar a fazenda grande novamente”, uma clara referência ao slogan de Trump, “make America great again”.

Nenhum artista que se preze, iria querer se associar a algo desse tipo, no entanto, Hauser conseguiu uma artista freelancer para ilustrar seu livro antissemita, Nina Khalova, uma ilustradora ucraniana, que não fazia ideia do verdadeiro contexto desse livro, uma vez que Hauser lhe passara apenas meias informações. O livro foi lançado de forma independente pela Amazon, porém ele conseguiu que uma editora independente o publicasse em capa dura, a Post Hill Press, que já havia outros livros conservadores no seu catálogo.

Matt procurou a firma de advogados Wilmer Hale para uma ação judicial. Spoiler: Eles conseguiram barrar o lançamento deste livro, e isto dera a Matt um ânimo para continuar essa luta, o próximo a ser processado foi Alex Jones (eu o vejo como um Siqueira Júnior + Caio Coppola + Alexandre Garcia + Augusto Nunes + Rodrigo Constantino, todos juntos numa forma asquerosa) por estar comercializando um cartaz com as iniciais MAGA (Make America Great Again) estampando o rosto da nata da nata da extrema-direita, incluindo Pepe.

Alex Jones comprou a briga, com a desculpa de que estava apenas exercendo seu direito expresso na primeira emenda da constituição, em outras palavras, a “liberdade de expressão”. Muitos dos que defendem essa tal “liberdade de expressão”, tanto lá nos EUA quanto aqui no brasil, se esquecem que nela está vedado o anonimato, a calúnia, a difamação, crimes contra a honra, injúria.

Quatro meses depois, em 10 de junho de 2019 Matt recebe a notícia positiva de um acordo. Matt não queria dinheiro, apenas impedir a disseminação de um símbolo de ódio, mas se dói no bolso de um propagador de teorias da conspiração, já é bom o suficiente. E não parou por aí, a InfoWars (como essa operação foi batizada) bateu de frente com muitas maçãs podres, incluindo Richard Spencer (neonazista envolvido no tumulto em Charlottesville que vemos ao final de Infiltrado na Klan (2018) em 12 de agosto de 2017), e reforçar os direitos legais de Matt sobre sua criação contra suas variantes distorcidas.

Acho interessante pensar na vitória que tiveram no tribunal, eu gostaria de ver isso sendo aplicado aqui: gostaria de ver Bolsonaro pagar indenização aos criadores do personagem Titeuf por calúnia e difamação, inventando um suposto “kit gay”; queria que a Disney processasse Damares Alves por enganar as pessoas dizendo que Frozen 2 (2019) teria um beijo lésbico entre Elsa e a Bela Adormecida; e que o Neil Gaiman a processasse por usar uma imagem do seu livro A Bela e a Adormecida (2015) para ilustrar essa notícia falsa.

 

UM PRESSÁGIO DO QUE ESTARIA POR VIR, E DO QUE ESTÁ POR VIR

Seria quase impossível retirar todos os Pepes cobertos de ódio dos EUA, pois o próprio país e seu presidente cultivam isso, porém há uma luz no fim do túnel, inesperadamente em Hong Kong, Pepe se tornara um meme completamente oposto ao americano, ele era um símbolo da democracia, liberdade, juventude, enquanto nos EUA as pessoas usavam Pepe para exaltar o autoritarismo, em Hong Kong ele era um símbolo contra o autoritarismo.

Para um ocultista entrevistado no documentário, Pepe é como um presságio, algo que transforma a sociedade para sempre, que surge para nos dizer que há algo de errado. Apesar de estar se transformando, se dissipando, ele pode voltar a assombrar num futuro próximo. Ao final do documentário, Matt Furie parece mais otimista sobre este conceito, para ele as coisas irão mudar, Donald Trump não será presidente para sempre, e o que se pode tirar de positivo nisso tudo é que sempre é possível mudar.

Assertivas palavras, o filme foi lançado nas vésperas da eleição presidencial que derrotou Trump, mas como vimos o desenrolar da História, não foi tão simples assim. Ao assistir a este filme em setembro de 2020 eu confesso que fiquei apreensivo, temendo a vitória de Trump nas urnas, e se o resultado fosse o contrário (o que foi), que o presidente do rosto alaranjado se recusasse a deixar o poder. É exatamente o que aconteceu, a marcha invasiva contra o Capitólio incentivada por Donald Trump chocou o mundo, e foi o catalisador para que eu escrevesse esse texto.

O ato que podemos chamar de terrorismo já era previsto, quem leu Como as Democracias Morrem sabe do que eu estou falando. Há um capítulo no qual os autores apontam quatro tópicos que nos ajudam a reconhecer um líder autoritário, Trump e Bolsonaro se encaixam nos quatro pontos. Não vou falar de todos os tópicos, apenas aos que dizem respeito a este evento. O segundo tópico é: “Negam a legitimidade de oponentes políticos”, em suma, demagogos se negam a aceitar os resultados eleitorais dignos nos quais eles não são vitoriosos, e nós vimos inúmeras vezes tanto Trump quanto Bolsonaro acusarem fraudes nas eleições, sem provas, apenas com uma “convicção”, porém dias antes da invasão ao Capitólio, a imprensa divulgou uma matéria que revelava uma gravação telefônica em que o ainda presidente norte-americano pedia e ameaçava o secretário da Geórgia para que ele fraudasse as eleições a seu favor. Bolsonaro não fica atrás, o Trump Tupiniquim já chegou a afirmar que houve fraude na eleição que ele venceu, também sem fornecer provas, existe apenas uma série de vídeos de supostas fraudes eleitorais que já foram desmascaradas pelo E-Farsas. Ainda sobre este assunto, num país com o voto impresso o demagogo diz haver fraude no sistema eleitoral, e no outro país em que o voto é eletrônico o demagogo também diz que há fraude no sistema eleitoral e pede para que haja voto impresso… onde está a coerência?

O terceiro tópico é: “Toleram e encorajam a violência”. Bem, nós acabamos de ver um documentário que mostra que Donald Trump e seus apoiadores falam a mesma língua: o Ódio.

É inegável que esse ato terrorista é uma ferida na democracia americana, e como a reportagem de O Globo vista anteriormente nos mostra, Jair Bolsonaro foi o único político a não demonstrar repúdio ao que acontecera em Washington, ao contrário, porém o vídeo não mostra o que o próprio presidente brasileiro diz em seguida: “Aqui no brasil, se tivermos o voto eletrônico em 22 vai ser a mesma coisa.”

Irei disponibilizar um vídeo de uma palestra com um dos autores, e atenção para a fala em 6:11.

Bem, irei transcrever a fala do Levitsky, caso o vídeo seja retirado do ar ou caso o leitor não tenha paciência para assistir aos completos 38 minutos: “Alguns dizem coisas assustadoras enquanto são candidatos e acabam se comportando melhor ao exercer o cargo. Mas a grande maioria faz o que diz que vai fazer. Eles se comportam como autoritários enquanto são candidatos, fazem discursos autoritários e atacam instituições democráticas quando viram presidentes e primeiros-ministros. […] A lição que tiro disso é que precisamos levar o que os candidatos dizem a sério. Eles não estão blefando.”

Se Pepe quer nos dizer alguma coisa, eu acho que sua mensagem é a seguinte: o 4chan tem de acabar; a Internet precisa de leis mais restritivas.

Um filme é um reflexo do seu tempo, e sem dúvida Feels Good Man ficará marcado como um reflexo deste período turbulento em que vivemos. E para complementar, gostaria de acrescentar a fala de um astro de Hollywood sobre estes eventos.