Um dos livros que me marcou logo que me tornei adulto foi O Patinho Feio 1984, de George Orwell, uma história que se passa num futuro distópico em que um regime totalitário manipula a informação, criando desinformação na população e tornando-os maleáveis, ou melhor, controláveis. Um conceito super inteligente que serviu de inspiração para diversas histórias como V de Vingança (Alan Moore, 1982), músicas como We Are the Dead do David Bowie, Ancient Verses e Since The Machine da minha queridíssima Melissa Ferlaak da Aesma Daeva, um reality show que ano após ano no Brasil premia mediocridade e baixaria, porém a obra que quero chamar a atenção neste texto é Equilibrium (2003), um filme que pega este conceito de um futuro distópico, um regime totalitário, e uma população controlável como ponto de partida, para contar sua história de redenção do Sacerdote John Preston. Este texto pretende ser mais uma reflexão proposta pelo filme, mas antes de continuar, devo avisar que haverá SPOILERS.
Ao invés de controlar a população através da falta de informação, neste filme a falta de emoção é o que as torna controláveis. Como visto logo no início deste filme, esta emoção é acionada por obras de arte, pinturas, livros, música, por isso tais objetos são ilegais para o Estado, mantidos escondidos pelos “terroristas”, quando descobertos são queimados, e quem as esconder será punido com a morte, incinerado. Este tópico me faz pensar na queima de livros promovida pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial (ver Indiana Jones e a Última Cruzada), mas para quem se interessa pela história, verá que a queima de livros é constante, o imperador romano Constantino punia da mesma forma que os “terroristas” de Equilibrium quem escondesse livros que defendiam a doutrina ariana. O livro que inspirou Kurt Wimmer a escrever o roteiro de Equilibrium também continha sua queima de textos, através de um instrumento chamado “buraco de memória”, porém no caso dos livros, estes eram reeditados em novilíngua, e seu contexto era perdido.
Outro elemento que contribui para a erradicação da emoção humana é uma droga chamada Prozium, a ser injetada num intervalo de tempo específico. Este nome é uma combinação de Prozac e Valium, a primeira é um antidepressivo conhecido como a pílula da felicidade, já a segunda droga é usada para tratar de ansiedade, e produz um efeito calmante. Em suma, podemos dizer que esta droga deixa a pessoa dormente, ou como eu prefiro colocar, confortavelmente amortecidos. Para saber mais a respeito de como esses antidepressivos atuam, e da teoria de como as indústrias farmacêuticas se beneficiam com a venda destes medicamentos, recomendo escutarem o podcast Horrores Urbanos, mais especificamente aos 12m40 e 18m30 (melhor dizendo, escutem todo o episódio).
Além da arte, pequenos gestos também levam a pessoa a sentir algo, um simples esparramar o cereal quando se está entediado, passar a mão pelo corrimão, uma corrida pelo corredor, um carinho num cachorro, ou uma reorganização na mesa de trabalho podem ser vistos como um crime, tais gestos são inibidos pela droga e pela denúncia. Este é o elemento que mais se aproxima da obra de George Orwell, em sua obra, o idealismo é o mal a ser combatido, qualquer indicação de pensamento próprio conferia à pessoa semanas ou meses no Ministério do Amor, onde a pessoa tinha seu espírito quebrado, e eventualmente aprendia a amar ao Grande Irmão. Em 1984, as crianças são incentivadas a vigiarem seus pais e denunciá-los caso cometessem crimideia, este conceito pode ser conferido em Equilibrium na maioria das cenas envolvendo o filho de Preston. Denúncias falsas aconteciam nestas duas obras, mas não estão muito longe da realidade, na história podemos conhece-la pelo nome de “Caça às Bruxas” ou “Caça aos Comunistas”.
Segundo a backstory apresentada no início do filme, toda esta distopia foi criada com o intuito de acabar com conflitos armados, após a humanidade sobreviver a uma Terceira Guerra Mundial. Durante esta contextualização vemos a imagem de alguns ditadores, como Saddam Hussein, Josef Stalin, Adolf Hitler, a semelhança entre os três está na cara, todos têm bigode espesso. Brincadeiras à parte, o filme usa estas figuras históricas para fazer sua crítica, sobre como eles abusavam do poder militar para impor sua vontade ou seus ideais, já a figura do Grande Irmão no livro de George Orwell esconde um sorriso misterioso em baixo de um grande bigode, claramente uma referência a Josef Stalin, portanto não é à toa que estas três figuras foram usadas no filme, como uma forma de fazer referência ao bigodudo do Grande Irmão, presente em todos os lugares nas páginas de 1984. O discurso inicial do “Pai”, interpretado por Sean Pertwee, carrega o espírito do Grande Irmão, – percebam que enquanto 84 chama o líder de irmão, aqui o líder é um pai – aparecendo diante de um telão e televisão (ou devo dizer, “Teletela”) e negando à população que não há mais guerra, enquanto na verdade há uma guerra civil sendo travada na própria cidade, enquanto que no livro, o Estado mente para a população sobre contra quem a Oceania está em guerra, possivelmente não há uma guerra propriamente dita, mas a sociedade precisa sentir que está em guerra, isso a torna mais volátil, nem que esta guerra seja forçada como vimos acontecer durante o mandato Bush, lembrando que Equilibrium é um filme de ação pós 11 de setembro. SPOILER ALERT: 1984 não deixa claro se o Grande Irmão realmente existe, pode ser apenas um símbolo, este é um dos conceitos que me fascina neste livro, pois isto me faz pensar em outras figuras de liderança que talvez não tenham existido, mas mesmo assim são seguidas, Equilibrium se aproxima deste conceito quando nos é revelado que o Pai não existe, ele é na verdade alguém que ocupa um cargo elevado no Estado, Dupont, interpretado por Angus Macfadyen, a quem Preston servia, algo que deveria ser visto como a relação entre Winston e O’Brien, mas Equilibrium não segue por este caminho.
Os pôsteres de divulgação do filme trazem a seguinte tagline: “Esqueça Matrix!”, claramente podemos ver a inspiração visual do filme que estrelava Keanu Reeves nesta ficção que estrela Christian Bale. No início dos anos 2000, vários filmes foram influenciados por Matrix, seu figurino predominantemente de couro preto, artes marciais muito bem coreografadas, filmes de ação com teor filosófico, efeitos visuais de ponta que serviam à história, todos estes elementos podem ser vistos neste filme, apesar de seguir uma fórmula com os mesmos ingredientes, Equilibrium não foi tão bem quanto o outro em bilheteria, enquanto este teve um orçamento de 20 milhões e arrecadou cerca de 5 milhões ao redor do mundo, Matrix custou 63 milhões e arrecadou 463. Minha teoria é que este “fracasso” seja resultado de um marketing ruim, esta tagline por exemplo, e o fato de Equilibrium ser lançado próximo de Matrix Reloaded, é claro que todos queriam ver como um dos filmes mais inovadores dos últimos anos iria continuar. Enquanto os Wachowski apostaram no carisma de Keanu Reeves, que já tinha uma carreira consistente e seu nome no cartaz chamava público, Christian Bale ainda estava caminhando, apesar de que Bale é melhor ator do que Reeves (a cena em que Bale resga a tela da janela me emociona até hoje), e trabalha desde criança, mas o mesmo não tinha sido consagrado como um herói de filmes de ação como se deu com Batman Begins em 2005. Apesar dessa comparação entre estes dois filmes de ficção científica, devo dizer que Equilibrium tem momentos de genialidade que se sobrepõem a momentos eh… meio ridículos, como o fato de os outros soldados usarem capacete, provavelmente poucos dublês foram contratados e reutilizados em diversas cenas; nenhum deles sangra ao levar um tiro, ao invés disso seus corpos são preenchidos por poeira, como os vilões de Power Rangers, e… bem, pra mim os pontos negativos terminam por aí. Quanto aos pontos positivos e momentos de genialidade, o roteiro mostra uma transformação gradativa no personagem de Bale; uma relação interessante entre ele e a personagem Mary O’Brien (seria este sobrenome outra referência a 1984?), vivida por Emily Watson, devo dizer que é mais interessante do que a do casal Neo e Trinity; o visual minimalista do filme, que me incomodava quando jovem por não trazer carros voadores, armas laser, ou qualquer outra inovação tecnológica, mas hoje vejo que esta arquitetura minimalista apenas contribui para a proposta do filme, abrindo mão da estética, que pode gerar uma emoção no usuário, o minimalismo é visto até mesmo no interior dos carros, completamente branco; e se as lutas pecam pela falta de sangue, elas são compensadas pela ótima coreografia, o estilo Gun-Kata, é uma modalidade de luta criada pelo próprio diretor Kurt Wimmer para este filme.
Da mesma forma como 1984 explodiu minha cabeça, Equilibrium é culpado da mesma coisa. O filme me faz pensar na importância que a arte tem sobre a sociedade, hoje, 16 anos após o lançamento deste filme, vejo o quanto a arte se transformou ao longo dos anos, cada vez menos as produções Hollywoodianas trazem reflexões, a música está perdendo a capacidade de nos fazer sentir algo para se tornar apenas uma marcação sonora (não fosse o metal sinfônico, o rock estaria completamente morto hoje em dia), e a literatura, bem… está cada vez mais escasso encontrar leitores (felizmente não tenho muito que reclamar de autores contemporâneos, até vejo que Suzanne Collins, autora de Jogos Vorazes, bebeu da mesma fonte que Kurt Wimmer). Tudo isso mostra que ao criar pouca arte relevante, ou até mesmo consumir cada vez menos arte, nossa sociedade está se aproximando cada vez mais deste futuro distópico, sentindo cada vez menos. Assim como o Estado condena e destrói obras de arte, nosso governo faz isso sempre que deixa de investir em cultura. Penso também em como a droga Prozium se tornou uma realidade, não na forma de um líquido que injetamos em nosso sangue, mas na forma de um dispositivo eletrônico que algumas pessoas sentem necessidade de visualizar a cada cinco minutos (e até mesmo dentro do cinema), as redes sociais são as nossas drogas contemporâneas, com tanta informação (falsa ou não), nos tornamos uma sociedade apática incapaz de sentir empatia, centrada no próprio umbigo. Equilibrium se tornou um filme relevante, que faz o que toda boa ficção científica faz: nos fazer refletir sobre a condição humana.