Até 1953, embora já somasse alguns trabalhos promissores, como Mônica e o Desejo, o sueco Ingmar Bergman não era conhecido nem mesmo na Europa mediterrânea. Foi com o lançamento de Noites de Circo que o cineasta surgiu não só para o circuito dos maiores festivais do velho continente, mas também se tornou respeitado no Brasil, onde foi apresentado, em 1954, por Walter Hugo Khouri, à época crítico de cinema do jornal O Estado de S. Paulo e grande entusiasta do universo árido, existencial e torturantemente silencioso de Bergman, o que influenciaria a estética do próprio cineasta paulista.
Ingmar Bergman não é um mero realizador dos anos de ouro do cinema de invenção. Sua vida e sua obra compõe uma mitologia repleta de contradições, erros, acertos, relacionamentos conturbados (sobretudo com sua musa inspiradora e amante por anos, Liv Ullmann) e uma inspiração que parecia não ter fim, nem limites. Herdeiro dos mestres do cinema sueco, como Victor Sjöström (1879-1960), com quem trabalharia em Morangos Silvestres, Bergman foi um “cineasta legista”, que autopsiou a psique humana com exímio manejo do bisturi de sua câmera sempre lacerante, e se valeu do laconismo dos diálogos e dos longos silêncios para potencializar o terror ruidoso da solidão.
Seus filmes são estudos sobre o existencialismo, as dores dos traumas e os esforços que todos fazemos para conviver com as contradições do cotidiano, enquanto buscamos acertar em nossas decisões ao mesmo tempo que renunciamos a escolhas cujos resultados não somos capazes de prever, sobretudo porque dependem de outrem. Eis o grande problema desta bela e desenganada dádiva chamada Vida. Não à toa, o diretor influenciou a carreira de, entre outros, Woody Allen, o próprio Khouri e Lars von Trier.
Selecionamos quatro filmes disponíveis no streaming do Telecine para que você faça uma imersão na filmografia de Ingmar Bergman, um verdadeiro poeta, que nos deixou em 30 de julho de 2007, aos 89 anos. Por coincidência triste, a mesma data em que perdemos o italiano Michelangelo Antonioni, outro gênio.
MORANGOS SILVESTRES (1957)
Com 17 filmes no currículo, em 1957, Ingmar Bergman dirigiu nada menos que quatro produções. Entre eles, está este, um dos mais conhecidos trabalhos do diretor. Neste drama de cunho existencial e memorialista, conhecemos o médico e professor Isak Borg (Victor Sjöström) que, aos 78 anos de idade se tornou um velho amargo e corroído pela frieza. Isolado, vendo seus dias se esgotando com rapidez e assombrado pelas diferenças hostis com seu próprio filho, Borg deverá viajar de Estocolmo a Lund, onde receberá uma homenagem na Universidade local por tantos anos estritamente dedicados ao trabalho.
Sua nora, a jovial e vívida Marriane é encarregada de levá-lo até seu destino. Enquanto a viagem de carro progride e novos personagens, sempre muitos jovens, começam a cruzar o caminho do velho mal-humorado, suas memórias da juventude, o desejo com contornos edípicos, os amores não correspondidos e o tempo perdido com uma vida levada a sério demais começam a torturar o renomado doutor, que sucumbe às lembranças da mulher que amou, reconhece o peso das escolhas que fez, mas teme não haver mais tempo para reescrever sua vida. A sequência inicial, em que Borg sonha com a própria morte enquanto se depara com um relógio sem ponteiros é emblemática.
Este é um dos mais laureados filmes de Ingmar Bergman, tendo recebido o prêmio de Melhor Filme em Língua Estrangeira no Globo de Ouro e de Melhor Diretor no Festival de Berlim, entre outros.
O SÉTIMO SELO (1957)
O renomado ator Max von Sydow vive, neste drama épico, o cavaleiro Antonius Block, guerreiro que retorna das Cruzadas ao seu povoado para encontrar uma terra devastada pela Peste Negra. Crivado de dúvidas sobre a existência de Deus, por quem lutou no Oriente Médio, somente para ver o estado lúgubre da população de seu país, Block é tomado por uma crise de fé e é convidado – literalmente – pela morte, em pessoa, para uma partida de xadrez em que sua própria vida está em xeque.
Enquanto acompanhamos a jornada de Block para ludibriar a Morte e resgatar sua fé, Bergman nos apresenta a Jof (Nils Poppe) e Mia (Bibi Andersson), artistas mambembes que tentam manter o otimismo em tempos tão sombrios levando diversão aos menos amparados pelo estado de coisas que a pandemia e a guerra trouxeram. A partir dessa dicotomia dos personagens, o cineasta constrói um poema visual que discute religião, existência, apego ao mundo material e ainda refaz a parábola de um novo Cristo renascido dos escombros da Peste. A cena final, que não estava prevista no roteiro original, é de uma beleza poucas vezes vista num filme. Prêmio de Melhor Filme, segundo o júri do Festival de Cannes de 1957.
QUANDO DUAS MULHERES PECAM (1966)
[também chamado pelo título original, Persona] – Elizabet (Liv Ullmann) e Alma (Bibi Andersson) são, respectivamente, uma respeitada atriz de teatro que acaba de sofrer uma crise emocional que a fez se calar (literalmente) para o mundo, e uma jovem enfermeira cheia de vida e ansiosa para se casar com o noivo e formar uma família. Elizabet é orientada por sua psiquiatra a passar uma temporada numa casa de campo, longe da civilização e das diversas “personas” que precisou vestir em sua arte e em sua vida, sob cuidados da terna Alma.
O que deveria ser uma desintoxicação mental se transforma num pesadelo existencial à medida em que as duas mulheres iniciam um processo de transferência de suas angústias e frustrações, fazendo do retiro um inferno emocional. Destaque para a cena em que ambas tentam acertar suas contas consigo e com suas vidas, numa dinâmica simbiótica cuidadosamente conduzido por Bergman. O diálogo em plano e contraplano nos é mostrado duas vezes em sequência, mas a cada vez, ouvimos o relato de uma das mulheres enquanto vemos somente o rosto da interlocutora e suas expressões de medo, dor e raiva. Um prato cheio aos estudantes de Psicologia. Premiado pela prestigiada Cahiers du Cinéma na categoria Melhor Filme do ano.
GRITOS E SUSSURROS (1972)
Agnes, Karin e Maria são três irmãs criadas no seio de uma família aristocrata apegada a valores ultrapassados e hipócritas, no início do século 20. Quando as conhecemos, Agnes está prestes a morrer de câncer e passa seus dias entre a agonia das crises agudíssimas da doença e o alívio de poucos momentos em que pode passear pelo jardim de sua mansão e olhar a beleza do mundo, que está se apagando diante de si. Cuidada pelas outras duas irmãs e pela dedicada empregada, Anna, Agnes revive seu passado buscando se livrar de antigas rusgas familiares que foram se acumulando.
Quando a morte a leva, suas irmãs parecem adentrar o mesmo universo sombrio das desditas do passado e iniciam um longo embate psicológico para acertarem suas pendências emocionais. Aqui, Bergman, como de costume, utiliza o silêncio e as reticências dos poucos diálogos para cristalizar a presença mórbida do fim iminente, a passagem inexorável do tempo e os efeitos da morte física de Agnes, o que também irá causar a morte simbólica das irmãs, chafurdadas na mera aparência, frias e melancólicas. Atenção ao uso ostensivo da cor vermelha nos cenários e nas nuances da fotografia. Símbolo da força pulsante e das paixões, a cor se contrasta com a presença inevitável da escuridão da morte. Ao comentar este efeito, Bergman costumava dizer que sempre imaginou que a alma humana fosse uma membrana repleta de tons vermelhos. Vencedor Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira.
P.S.: Deixamos um bônus para os que tiverem estômago e, acima de tudo, cabeça!
BÔNUS PARA QUEM TEM PSICOLÓGICO DE AÇO
Menos citados no conjunto imenso da filmografia de Ingmar Bergman, A Fonte da Donzela (1960) e Da Vida das Marionetes (1980) são dois dos mais cruéis e diretos trabalhos do diretor. No primeiro filme, Bergman retoma o cenário da Idade Média para contar a história da jovem Märeta, filha de um respeitado e devotado soldado das Cruzadas, que é brutalmente violada e morta por mercenários enquanto fazia uma viagem para cumprir uma promessa em honra de Deus. Novamente, a crise de fé, a inveja e as contradições da benevolência são temas que permeiam esta singela produção.
No segundo filme, Bergman, em sua plena maturidade profissional, nos relata a tempestuosa vida de Peter Egermann, um executivo, filho da cultura Yoopie e da alta produtividade pós-moderna. Transtornado e infeliz no casamento, e assombrado por traumas familiares, Peter assassina uma prostituta após um surto psicótico. O crime é examinado por meio de testemunhos quase documentais de pessoas próximas a ele, como seu psicanalista e sua esposa, que mantêm um caso amoroso em segredo. De novo, um deleite aos futuros psicólogos.
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Você poderá assistir aos filmes Morangos Silvestres, O Sétimo Selo, Quando Duas Mulheres Pecam, Gritos e Sussuros e outros do diretor Ingmar Bergman.
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*Esse post foi produzido pela equipe do Cinemascope conta com o patrocínio do Telecine.
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