Por Sttela Vasco
A primeira vez em que eu assisti Para Wong Foo, Obrigada por Tudo! Julie Newmar eu deveria ter entre oito ou nove anos. Não lembro de muita coisa e confesso que precisei rever o filme para poder indicá-lo. Mas lembro da minha mãe comentando o quanto o adorava e lembro também que, de alguma forma, me marcou. Levei anos para descobrir o título. O nome longo não ajuda muito a memorizá-lo, mas, uma vez que você o assiste, é impossível esquecê-lo. Para Wong Foo é um daqueles longas que não envelhecem.
Patrick Swayze, Wesley Snipes e John Leguizamo são facilmente lembrados por seus papeis de galãs ou protagonistas em filmes de ação. No entanto, é em Para Wong Foo que é possível ver seu talento além da zona de conforto. Eles são, respectivamente, Vida Boheme, Noxeema Jackson e Chi Chi Rodriguez, três drag queens que, durante a grande viagem de suas vidas, acabam tendo que fazer uma parada inesperada no meio do caminho que muda suas perspectivas.
Após vencerem uma competição em Nova York, Vida e Noxeema se preparam para viajar rumo ao Drag Queen of America, em Los Angeles. No entanto, pouco antes de irem, Vida se comove pela história de Chi Chi, uma das desclassificadas que fica extremamente abalada após perder o concurso. A dupla decide, então, adotar Chi Chi como pupila. Elas trocam a ida à L.A em um avião, por uma longa viagem a bordo de um velho Cadillac. Em uma noite, no entanto, o carro do trio quebra em uma pequena cidade no interior dos Estados Unidos e elas se veem obrigadas a adiar a viagem. Pouco a pouco, as três conquistam a simpatia dos moradores e começam a mudar a vida dos habitantes e as suas próprias.
Uma parte do longa segue a linha road trip movie, o que já traz agilidade ao roteiro. A história, aliás, consegue visitar diversos lugares em seus primeiro minutos sem deixar pontas soltas. No entanto, o principal ocorre quando elas chegam à Snydersville. Lá, elas precisam aprender a adaptar seu estilo urbano e glamouroso ao da cidade pequena do interior. A troca com os personagens locais se faz de forma extremamente rica. Cada uma acaba se aproximando de um morador. Noxeema, por exemplo, se torna amiga de Clara, uma senhora ex-dona de uma distribuidora que parou de se comunicar após ser abandonada pelo marido. Enquanto Clara ensina Noxeema sobre cinema, a mesma a reensina a viver. O filme todo, aliás, é composto por relações que reiteram a premissa de que, mesmo quem nos parece o extremo oposto pode ter muito a ensinar, quando dada a chance.
Para Wong Foo é muito além de um filme de comédia. O humor, de fato, é grande ingrediente da obra, mas não a limita a isso. Os diálogos são inteligentes e refletem uma sociedade que, se observarmos bem, não mudou tanto quanto tenta mostrar. Os termos pejorativos, os abusos e os preconceitos continuam aí. Um pouco mais camuflados às vezes, mas igualmente presentes. O longa, porém, mantém a leveza e a diversão, sabendo entreter o espectador e trazer tais temas, se não a debate, ao menos à reflexão.
Sua principal marca é, aliás, o fato de ser atemporal. Gravado em 1995, o filme traz temas e questionamentos que se mantém atuais de uma forma bonita e sutil. O primeiro a ser levantado é a homofobia. Vemos Chi Chi ser verbalmente agredida logo no começo do longa e, conforme avançamos, situações assim se tornam cada vez mais frequentes. Em determinado momento, elas estão na estrada e precisam parar para passar a noite em um hotel. Com medo de serem maltratadas, Vida e Noxeema se recusam entrar em um de luxo e insistem a todo instante para dormirem no carro. Elas só são aceitas após o gerente confundi-las com o time de basquete feminino que estava se hospedando no local.
O preconceito racial e a xenofobia também são trabalhados pela obra. Em certo momento, elas são abordadas por um xerife que, ao se deparar com Noxeema e Chi Chi, diz à Vida que não é certo uma dama branca estar acompanhada de uma negra e uma latina. Em seguida, ele tenta estuprar Vida, que consegue se defender após utilizar a força e empurrar o homem, que acaba ficando desacordado na estrada. Essa, aliás, apenas uma das ocasiões em que mulheres sofrem abusos ou são desrespeitadas no longa. Logo ao chegarem à pequena cidade, um grupo tenta violentar Chi Chi e, a todo o tempo, repetem a frase “eu sei que você quer” ou insinuam que a forma como ela se comporta ou veste é sinal de que quer ser abusada sexualmente. Coisas que vimos e ouvimos ainda nos dias de hoje. Sim ainda. Mesmo após quase 20 anos, Para Wong Foo continua uma crítica extremamente atual à sociedade.
Há ainda a história de Carol Ann (Stockard Channing), uma mulher oprimida e que sofre violência doméstica, e tem a vida transformada após conhecer Mrs. Vida. Ao passo em que vão “consertando” a vida de cada morador, Chi Chi, Noxeema e Vida vão aprendendo a lidar com seus próprios problemas. A composição destas três personagens, aliás, é belíssima. Cada uma das três têm seus próprios demônios – uma infância difícil, a rejeição da família, a própria autoestima – para lidar e personalidades que, apesar de extremamente diferentes, se complementam. É difícil não se encantar pelo trio e não começar a torcer por cada uma.
O autógrafo de Julie Newmar para Wong Foo existe e foi visto em um restaurante chinês localizado na Times Square pelo roteirista da obra, Douglas Carter Beane. Carter achou que seria apropriado e a foto, além de se tornar um dos fios condutores da trama, deu título a ela. A criatividade para nomes, aliás, é um dos pontos fortes do longa. Alguns nomes, como Virgil e Beatrice, foram retirados de clássicos da literatura. Os dois citados são personagens de A Divina Comédia, de Dante Alighieri.
Para Wong Foo é um daqueles filmes que podem ser vistos várias vezes e não cansam. Com humor, drama e críticas na medida certa, ele consegue transmitir sua mensagem e divertir. As participações especiais de Ru Paul, Robbie Willians e da própria Julie Newmar enriquece a obra e são um convite a mais para quem ainda não a conhece. Uma dica pessoal de quem, após mais de dez anos, a reencontrou e não poderia ter ficado mais feliz.
Veja o trailer: