Por Sttela Vasco
“Francamente, minha querida, eu não dou a mínima…”
Quem nunca ouviu ou leu a frase acima em algum lugar? Ao falarmos de clássicos do cinema, é impossível não citar …E o Vento Levou (Gone With the Wind), obra de 1939, dirigida em boa parte por Victor Fleming e inspirada no romance homônimo escrito por Margaret Mitchell entre 1926 e 1929, publicado em 1936 e vencedor do Prêmio Pulitzer em 1937. Um marco inegável para a cinematografia, o longa, que trabalha conflitos presentes no cerne da construção e evolução dos Estados Unidos, passou pelas mais diversas provações para ser concluído e fez história tanto dentro como fora das telonas.
Ambientado no ano de 1861, às vésperas, durante e após a Guerra Civil Americana, a obra tem como foco a história da bela, mimada e rebelde Scarlett O’Hara – vivida por Vivien Leigh – e sua vida até então despreocupada em Tara, a grande plantação na Geórgia onde ela vive com seu pai, um imigrante irlandês, sua mãe, suas duas irmãs mais novas, além dos escravos. O objetivo maior de Scarlett é conseguir conquistar Ashley Wilkes (Leslie Howard), primogênito e futuro herdeiro da plantação Twelve Oaks que, para o desespero da jovem, acaba de firmar compromisso com a prima, a doce e bondosa Melanie Hamilton (Olivia de Havilland). Tudo muda, porém, quando o norte do país declara guerra ao sul e todos os homens se alistam no exército. Rapidamente, a fome e a destruição vão tomando conta da região e Scarlett se vê obrigada a tomar as mais difíceis decisões para salvar a si mesma e a Tara. Em meio a isso, ela conhece o aventureiro Rhett Buttler (Clark Gable), com quem desenvolve uma conturbada relação de amor e ódio.
Logo que Mitchell lançou seu livro, já era esperado que o mesmo fosse adaptado para os cinemas. A obra se tornou um sucesso instantâneo vendendo um milhão de cópias em seis meses nos EUA. Um mês após o lançamento, o produtor David O. Selznick adquiriu os direitos autorais por US$ 50 mil, o que era, até então, a quantia mais alta paga a um autor por seu primeiro livro – no caso de Margaret, o único, pois, ela não voltou a publicar mais nada. A partir daí, começou a grande saga que seria para transportar …E o Vento Levou das páginas para as telas. A primeira dificuldade foi transformar o livro de aproximadamente mil páginas em um roteiro que mantivesse a essência da história, mas conseguisse ser mais compacto. A tarefa ficou por conta de Sidney Howard e a primeira versão do roteiro acabou tendo 400 páginas. Como tal volume teria rendido um longa de mais de seis horas de duração, foi preciso cortar o roteiro pela metade. Howard, porém, faleceu durante as filmagens e foi necessário um grupo de 12 roteiristas – entre eles nomes como F. Scott Fitzgerald , William Faukner e Ben Hecth – para editar a obra e adaptá-la ao seu formato final. Daí vem a confusão quanto aos créditos pelo roteiro e, por essa razão, é possível ver nomes diferentes quando se busca pelo autor. O trabalho, por fim, rendeu um Oscar póstumo de Melhor Roteiro Original a Sidney em 1940.
Adaptada a obra, vieram os problemas com os diretores. …E o Vento Levou contou, no total, com cinco pessoas na direção ao longo de sua produção. O primeiro a ser escalado foi George Cukor, contratado por Selznick. O contrato, no entanto, durou pouco. Boatos de problemas com Gable e reclamações devido à demora do diretor fizeram com que Cukor saísse do cargo após 18 dias. Três dias após George deixar a produção, Victor Fleming, que viria a ser o responsável pela maior parte do longa, passou a ser o diretor. Indicado por Clark Gable, Fleming abandonou O Mágico de Oz para se dedicar à obra. Ele, porém, precisou ser temporariamente substituído por Sam Wood após sofrer um colapso nervoso. No total, Fleming ficou responsável por 45% das filmagens. Outras porções foram designadas, além dos já citados, a William Cameron Menzies e Sidney Franklin, porém, nenhum foi creditado ao final.
As dificuldades, no entanto, não terminaram na pré-produção. Não foi somente na troca de diretores ou roteiristas que a história da superprodução do filme ficou cercada por números altos. No total, o longa precisou de seis meses para ser realizado. As filmagens, que começaram em 1º de janeiro de 1939, vieram a ser concluídas apenas em 1º de julho e o orçamento final ficou em torno de US$ 4,25 milhões, número considerado extravagante para época, mas que foi recompensado pelo lucro gerado pelo longa. Para se ter uma ideia, após quatro anos de seu lançamento, …E o Vento Levou ainda gerava renda com as bilheterias, superando US$ 32 milhões em arrecadação, e se transformando em uma febre para aquela geração.
É fato que …E o Vento Levou nada seria sem sua Scarlett. Para se chegar à intérprete da protagonista, foi preciso entrevistar 1.400 atrizes e mais de quatro testes. O papel ficou entre Paulette Goddard e a até então pouco conhecida Vivien Leigh. Nascida em Darjeeling, na Índia Britânica, a atriz fez contato com a produção do outro lado do oceano e não descansou enquanto não foi chamada para o teste. Ao final, a escolha não poderia ser mais certeira. Leigh dá vida a Scarlett com graciosidade e força, transmitindo delicadeza e sagacidade. E não poderia ser menos, afinal, a senhorita O’Hara é a alma do filme. Ela é a perfeita anti-heroína. Mimada e egocêntrica no início, passa pelas mais diversas provações ao longo do desenrolar da guerra. Sua sequência de perdas vão, aos poucos, endurecendo sua personalidade e forçando-a a amadurecer. A jovem vê seu amor de infância se casar com outra e partir para uma batalha com poucas chances de vitória, se vê obrigada a ajudar a esposa dele, precisa se separar de sua tão amada Tara, enfrenta a fome e a miséria, vê pessoas morrendo e todo o seu mundo de luxo e festas ruir de uma vez diante de seus olhos. Com isso, Scarlett passa a se tornar objetiva e prática, sem medir esforços para manter sua casa e sua família a salvo. Responsável por algumas das cenas e falas mais memoráveis do longa, como, por exemplo, a clássica “Com Deus por testemunha, eu nunca mais passarei fome!”, que marca a primeira grande virada em sua personalidade – a segunda se dá quando ela percebe que ama Rhett, mas o está perdendo -, Scarlett é uma garota que precisou se adequar às situações e dançar conforme a música, o que ela faz com desenvoltura.
Questionada por seus atos e julgada por boa parte da sociedade, Scarlett é uma mulher a frente de seu tempo. Ela não cede às dificuldades e não tem escrúpulos quando precisa evitar que sua família volte a passar fome. Inteligente e esperta, ela acaba se cegando por suas fraquezas materiais e por seu extremo medo de retornar à pobreza. E é esse conjunto o que a faz tão querida e memorável. Scarlett é comum. Repleta de falhas e com muitos defeitos, ela é apenas um ser humano. Não se deixa abalar pelas críticas e se mantém firme em suas decisões. Uma mulher que, em meio a dificuldade, faz o que pode para sobreviver. O que mais encanta, talvez, seja o fato de que, apesar dos inúmeros golpes que sofre, nada quebra o espírito de Scarlett. Mesmo chorando, sofrendo e com medo, ela persiste. Até porque esse é o único jeito de se manter viva. Impressiona, então, que uma personagem tão marcante, que conduz a narrativa e que exigiu tanto de Leigh, rendeu financeiramente à atriz menos do que Rhett rendeu a Gable. Vivien trabalhou no set de filmagem por 125 dias e recebeu US$ 25 mil. Clark, por sua vez, trabalhou 71 e recebeu por isso um cachê de US$ 120 mil.
Tal discrepância nos salários revela um problema que a indústria cinematográfica – principalmente a hollywoodiana – vive até hoje: a dificuldade em se obter salários igualitários entre homens e mulheres. Essa, no entanto, não é a única desigualdade em torno de …E o Vento Levou. O longa trata de desigualdades tanto dentro da tela quanto fora dela. A mais gritante foi a ocorrida com a atriz Hattie McDaniel. Intérprete de Mammy, a protetora e firme escrava da família O’Hara que tinha um papel de mãe para as meninas e que é responsável por apoiar Scarlett – e dar puxões de orelha na mesma – durante toda a sua trajetória, Hattie é uma das figuras mais importantes do longa. Ela é a fortaleza de Scarlett e também a representação de o que para ela é o seu lar. Tal trabalho rendeu à atriz o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante em 1940, o primeiro entregue a uma pessoa negra. McDaniel, porém, foi proibida de ir à première do longa em Atlanta e precisou se sentar isolada de seus colegas na cerimônia, ficando em uma mesa ao fundo com seu agente. O momento em que ela recebe o prêmio (veja abaixo) é, além de histórico, emocionante e revoltante. Por conta do racismo e da segregação racial imposta nos EUA naquele período, Hattie não pode comemorar junto à equipe. Ela conseguiu o maior prêmio do cinema, estava no mesmo patamar que Vivien, mas ainda assim não lhe foi permitido estar junto à colega para receber tal prestígio. No total, o filme foi agraciado dez vezes pelo prêmio – Melhor Filme; Melhor Diretor; Melhor Atriz; Melhor Atriz Coadjuvante; Melhor Direção de Arte; Melhor Fotografia Colorida; Melhor Edição; Melhor Roteiro; Prêmio Honorário (William Cameron Menzies); Prêmio Técnico (Don Musgrave) – e entrou para a história como o primeiro filme em cores a conquistar o Oscar como Melhor Filme.
Tanta atenção, tanto por parte de prêmios, do público e da crítica, é justificável. …E o Vento Levou é uma obra inegavelmente grandiosa em mais de um sentido. A extravagância vai desde o seu figurino – foram, aproximadamente, 4.118 peças utilizadas – até a produção dos cenários e a elaboração das cenas. A presença das cores também merece destaque. Apesar de outras obras já utilizarem a técnica na época em que longa foi rodado, é preciso ressaltar a forma que os tons são orquestrados. A fotografia é quente em boa parte da obra e, em paralelo, as cores que se sobressaem também o são. O vermelho, o vinho e o laranja são constantemente empregados na trama e colaboram com a criação do cenário de guerra, aridez e destruição que permeia boa parte da história.
Sem a computação gráfica para gerar suas explosões, o longa contou com chamas reais para a cena do incêndio em Atlanta. Para rodar a mesma, foram queimados cenários antigos de filmes realizados pelo estúdio como, por exemplo, King Kong. A intensidade foi tanta que alguns moradores vizinhos chegaram a chamar os bombeiros acreditando que se tratava de um incêndio real. Outra cena que precisou utilizar da criatividade da produção é a que Scarlett anda entre os mortos e feridos após o ataque. Foram precisos ao menos mil figurantes e mais 800 manequins para compor o cenário e dar mais realismo à cena, que também chamou a atenção por sua originalidade: a imagem é mostrada do alto, acompanhando a protagonista por cima, o que foi possível graças à utilização de um guindaste de 43 metro de altura e da mente criativa de William Cameron Menzies.
As curiosidades em torno do longa, seus exageros, tamanho e brigas – há quem diga que Clark Gable e Vivien Leigh se detestavam e discutiam frequentemente nos bastidores. Alguns boatos sugerem que ele mastigava alho antes das cenas de beijo para irritar a atriz – são muitas. Porém, não é apenas a pompa e os excessos que transformaram …E o Vento Levou em um clássico. A obra tinha tudo para se tornar um enfadonho romance melodramático, porém, consegue ir além. Muito mais do que o relacionamento de Scarlett e Rhett, o longa retrata a história da formação dos EUA, a luta pela sobrevivência em tempos de guerra, a complexidade das relações, sentimentos e dos valores humanos e, também, da hipocrisia que, por sinal, é muito bem retratada em uma cena entre Scarlett e Ashley na madeireira. Ela contrata prisioneiros para trabalhar no local e é repreendida pelo sócio, que afirma ser desumana a maneira como o capataz trataria os homens – chicoteando-os e deixando-os passar fome – a qual ela responde com um “você não tinha escravos na sua fazenda?”. Ashley tenta argumentar, diz que era uma situação diferente e que libertaria seus escravos após a morte do pai, mas não pode negar que Scarlett tem um ponto. A mensagem, aliás, é atual. Tendemos a criticar as atitudes dos outros, mas esquecemos de observar as nossas próprias.
As lutas e questões globais, porém, perdem a força a partir da metade do longa e deixam de ter foco no terceiro ato, no qual o filme passa a se dedicar integralmente ao romance entre Scarlett e Rhett, às relações que os cercam e a vida pós-guerra. As pequenas reviravoltas e o drama por vezes exagerado acabam por tornar o final, apesar de emotivo, cansativo. Tal centralização nos sentimentos e nos relacionamentos reduz a agilidade do roteiro, o que não tira a qualidade do filme, mas faz com que perca alguns espectadores que buscam algo mais crítico. Não teria, no entanto, como cortar o terceiro ato. …E o Vento Levou tem o romance em uma de suas bases, a relação amor e ódio dos protagonistas causa alívios cômicos e pontos de tensão na história e acaba por conduzir a mesma. A ligação entre ambos é construída pouco a pouco e fica bem desenvolvida, mas perde pelo drama, pelos problemas em demasia e por uma tentativa desgastante de prolongar o longa ao máximo – o que fez com que os cinemas fossem obrigados a inserir um intervalo na sessão para que o público pudesse acompanhá-lo até o final.
Com suas quase quatro horas de duração, …E o Vento Levou é um filme de muitas lições, percepções e sentimentos. É também uma história que, inevitavelmente, fica presa a alguns estereótipos e clichês. O comportamento “típico” sulista e como ele é retratado, a ideia de bela jovem da região – a jovem mais bonita que atrai a atenção de todos invariavelmente e aqui representada na figura de Scarlett – e a própria maneira que Mammy e os escravos em geral são retratos – como se estivessem confortáveis com sua situação, tornando-se ”mães” e ”protetores” da família – também compõem essa série de imagens pré concebidas e, em grande parte, erroneamente imaginadas em relação a um contexto histórico. Há, porém, um impasse entre os estudiosos sobre a obra em relação a isso. Se por um lado muitos creem que Margaret não foi realista e crítica, outros acreditam que seus personagens e tais cenários foram concebidos de tal maneira propositadamente, como uma forma de utilizar esses estereótipos para ironizar as situações já citadas e outras abordadas pelo longa. É possível pensar que, talvez, seja uma ironia à la Scarlett, que ri dos absurdos e incongruências de um comportamento e lugar reproduzindo alguns de seus padrões.
Por tratar de tantas temáticas e envolver tantos debates e interpretações, é difícil definir ou enquadrar o longa. Com suas dificuldades e com o desafio de tornar um romance tão difundido em um filme de igual importância, ele cumpre bem sua missão e merece o lugar que tem dentre os clássicos do cinema. Tão humana quanto suas personagens, a obra tem falhas e defeitos, mas consegue ser envolvente, interessante e desperta no espectador as mais diferentes sensações. Torcemos pela heroína mimada, forte e por vezes inescrupulosa, nos envolvemos por sua história de amor não correspondida, por seu estranho e confuso laço de amizade criado com a doce e extremamente bondosa Melanie e por seu amor por um capitão tão igualmente inescrupuloso, sarcástico e interesseiro quanto ela. É um filme sobre guerra, mas muito mais sobre o ser humano em si. Não à toa, é tão querido por tantas pessoas. Trata-se de uma obra com aspectos atemporais, que trata de batalhas – pessoais e gerais – e de amor.
…E o Vento Levou foi relançado nove vezes até o momento. Em 1947, 1954 – quando ocorreu a primeira exibição do longa em formado widescreen, o que acabou prejudicando as partes superiores e inferiores das cenas e fez com que cinco sequências fossem alteradas para que as imagens pudessem ser ajustadas – em 1961, durante a celebração do centenário do início da Guerra de Secessão, em 1967, quando a produção foi aumentada para 70 mm e lançada com o pôster que ilustra esse texto (Scarlett nos braços de Rhett, durante o incêndio), em 1971, 1974, 1989, edição em que ocorreu a comemoração dos 50 anos de lançamento e na qual houve a restauração do áudio e vídeo, em 1998, em 2013, quando a obra ganhou uma restauração digital em 4k, e em 2014, quando algumas exibições especiais ocorreram nos EUA para comemorar o aniversário de 75 anos da estreia.
Como era de se esperar de uma obra que causou tamanho frisson e lucro, uma sequência foi realizada. Mitchell nunca cogitou escrever uma continuação para …E o Vento Levou. Ao que tudo indica, ela acreditava que o melhor final era aquele em que seus leitores elaborassem por si próprios os rumos que a vida de Scarlett e todos ao seu redor tomaria. Porém, em 1991, os herdeiros da autora decidiram autorizar uma nova obra dentro do universo de Vento. Narrando os eventos ocorridos após o fim da obra original, Scarlett, escrito por Alexandra Ripley, foi adaptado para a TV pela CBS em 1994, transformando-se em uma minissérie/filme para televisão estrelada por Joanne Whallet como Scarlett e Timothy Dalton como Rhett. Ambos, no entanto, não foram bem aceitos pela crítica e frustrou alguns fãs por se desviar do tom original que a obra possuía. Como a história nos ensinou, algumas obras não nasceram para remakes ou continuações. São únicas por terem ocorrido como ocorreram em sua própria época e mantém sua magia justamente pelo que têm, sem precisar tirar ou por. …E o Vento Levou, enfim, é uma delas.