A escritora britânica J.K. Rowling deu origem a um dos universos ficcionais mais populares e intrincados da literatura contemporânea. Cheio de personagens inesquecíveis, as aventuras de Harry Potter marcaram a vida de toda uma geração de leitores, incluindo esse que vos fala. Com o fim da série de livros em 2007 e dos filmes em 2011 os fãs da bruxidade se viram órfãos das aventuras mágicas que haviam acompanhado durante anos. Mas, seguindo o tino comercial da Warner, a autora virou roteirista e em 2016 iniciou a franquia Animais Fantásticos, tendo como protagonista Newt Scamander (Eddie Redmayne).
Após o ótimo Animais Fantásticos e Onde Habitam, o mundo mágico de Rowling volta a ganhar vida com Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindewald. Os acontecimentos do novo longa se desenrolam em 1927, poucos meses após os eventos do primeiro filme. Tendo Paris como principal plano de fundo, vemos Newt, Tina (Katherine Waterston), Queenie (Alison Sudol) e Jacob (Dan Fogler) às voltas para encontrar o jovem Credence (Ezra Miller), que se juntou ao festival de aberrações do Circo Arcanus. Enquanto isso, Gerardo Grindewald (Johnny Depp) ganha forças e novos seguidores. Já Alvo Dumbledore (Jude Law), então professor em Hogwarts, usa de sua influência com Newt para encarrega-lo de uma missão que visa impedir o avanço do bruxo das trevas.
Em meio aos rostos conhecidos, novas figuras ganham a tela como Leta Lestrange (Zoe Kravitz), Teseu Scamander (Callum Turner), Nagini (Claudia Kim) e Yusuf Kama (William Nadylam). No melhor estilo Rowling, as narrativas de cada personagem se cruzam de maneiras imprevisíveis. Porém, o excesso de figuras dramáticas possui um efeito adverso e, tendo o tempo como limitador, alguns plots acabam resolvidos rapidamente.
Mesmo assim, o espectador embarca facilmente na história e é arrebatado pela fotografia exuberante. Cenários como o Ministério da Magia Francês e os redutos mágicos parisienses são de encher os olhos. Ao mesmo tempo, a película aquece o coração dos fãs ao revisitar locais conhecidos como Hogwarts e o Ministério Britânico. Aliado a isso está o design de criaturas, que dá vida a animais belíssimos e muito detalhados, com destaque para Zouwu, uma lendária criatura chinesa, e o Pelúcio, que se tornou querido pelo público.
Contudo, o trabalho competente de Yates na direção, que mostra seus melhores momentos nas sequências de ação mágica, tem no roteiro de Rowling seu calcanhar de Aquiles. O texto presta inúmeras homenagens ao universo já estabelecido e aborda questões interessantes, como a relação da família Dumbledore com as fênix. Mas, ainda que bem elaborado e intrincando, J.K. parece forçar os pontos de conexão entre a nova série de filmes e a franquia anterior. Por vezes, objetos mágicos ou feitiços são utilizados sem uma explicação prévia, o que pode confundir o público pouco versado no universo bruxo.
Vários personagens possuem justificativas frágeis para suas ações e o artifício dos flashbacks, bem trabalhado em O Enigma do Príncipe, esclarece motivações e fatos do passado com um didatismo extremo e simplista. Outra triste constatação é que os belos animais fantásticos que nomeiam a projeção perderam seu protagonismo. Diferente do primeiro longa da franquia, em que as criaturas são a justificativa para toda a aventura, aqui elas aparecem como coadjuvantes. Com duas exceções, os seres mágicos participam de cenas tão lindas quanto avulsas, que em nada avançam a narrativa.
O intuito desta nova série de filmes é mesmo contar a relação entre os dois grandes bruxos daquela época: Dumbledore e Grindewald. O eterno diretor de Hogwarts, em 1927 ainda professor de Defesa Contra as Artes das Trevas, mostra-se semelhante ao personagem interpretado por Michael Gambon. Além de servir como mentor para jovens feiticeiros como Newt, ele mantém um quê de Mestre dos Magos ao lançar Scamander em uma aventura sem explicar claramente suas motivações e desaparecer em seguida. Para dar vida a esse mestre ambíguo, Law faz boas escolhas e parece confortável em sua interpretação.
Já Grindewald, vivido por um Depp, que não extrapola seus maneirismos, se mostra uma figura contida. Suas motivações se apoiam no lema “Pelo Bem Maior”, que consiste em elevar a raça bruxa ao status elite dominante e sobrepujar os trouxas. De maneira vil, ele usa palavras doces para incitar um ódio velado. Nesse sentido, o espectador vê grandes diferenças entre este vilão e Voldermort, o inominável da série Harry Potter. Enquanto Voldemort é a encarnação do puro mal, Grindewald acredita estar fazendo o bem. Com discursos apaixonados ele conquista a opinião popular e gera uma polarização da sociedade mágica.
Tal necessidade de tomar um lado é cobrada dos personagens desde o início e estabelece um paralelo com o mundo politicamente dividido em que vivemos. Em Os Crimes de Grindewald não existe meio termo: ou se está com ele ou contra ele. A atenção do roteiro quanto a essa cisão acaba por prejudicar os plots secundários.
A relação entre Queenie e Jacob, por exemplo, se torna demasiadamente rasa. Ela se sente perdida e sozinha, enquanto a ele é relegado o papel de alívio cômico que, apesar de muito efetivo, acaba por perder força no ato final. A situação não é melhor para Tina e Newt que começam o longa com uma querela infundada. Após resolvida a situação, os personagens voltam à mesma posição do filme anterior, demonstrando uma grande estagnação no avanço da narrativa. Vale ressaltar ainda que a lógica de causa e efeito se mostra abalada. A reação que esperamos de algumas figuras não é a que vemos na tela, o que contradiz as personas conhecidas e prejudica a trama como um todo.
Diante de tantos pontos ambíguos, talvez a maior falha da projeção resida em seu final. O derradeiro twist, ainda que chocante, não possui qualquer embasamento na mitologia estabelecida da série. Passada a surpresa, o público acostumado com o estilo de escrita interligado da autora tem a sensação de que as novas peças apresentadas não se encaixam no universo existente. Já o espectador que acompanha a franquia em busca de um escapismo descompromissado pode ter problemas com os furos de roteiro e as explicações mambembes. Nesse sentido, Animais Fantásticos: Os Crime de Grindewald reforça uma das regras do cinema: independente de quão boa é a técnica de um filme, ele não se sustenta sem um argumento sólido e convincente.