Por Cícero Pedro Leão
A experiência selvagem de uma vaca em crise
Ao comentar sobre filmes que aparentemente são obscuros, o teórico de cinema Noel Burch, em Práxis do Cinema, escreveu que algumas obras não exigem interpretações, mas precisam somente que sejam vistas. “Não existe nada que possa estragar mais nosso prazer em nos perdermos em seus labirintos, feitos para a vista e para o espírito, do que procurar uma significação oculta para eles. ” Acredito que Animal Político, o primeiro longa-metragem de Tião, depois dos premiados curtas Muro (2008) e Sem Coração (2014), é um desses filmes. Não que o seu tema seja indecifrável. Pelo contrário, ele é claro e simples: a crise existencial de um ser que tem uma suposta vida perfeita. O diferencial ocorre justamente com o que é feito a partir desse tema. Isso já começa pela escolha da protagonista, uma vaca, cujos pensamentos são narrados por um homem (Rodrigo Bolzan). No entanto, isso é somente o primeiro aspecto inusitado do filme, que gradativamente segue uma direção tortuosa e interessante.
A vaca protagonista não causa estranhamento nas pessoas em sua volta. A sua existência é completamente naturalizada. Alguns planos estáticos são quase fotografias de uma vida sem defeitos. Aparentemente, tudo está ali: a família, os amigos, a academia, o supermercado e a rotina. A perfeição, entretanto, vem acompanhada de uma clara apatia, que estranhamente se reflete nos olhos negros do animal. A busca pelo selvagem se torna necessária. Ela não encontra uma resposta, mas isso não importa. O selvagem está justamente na busca.
O filme possui praticamente três etapas principais: a primeira apresenta a vida normal da protagonista até o momento de sua ruptura, sendo vivida por uma vaca de verdade; a segunda é uma espécie de episódio intitulado “A Pequena Caucasiana”, e mostra momentos de uma jovem perdida em uma ilha deserta; e a terceira marca o retorno da vaca para sua casa, sendo não mais vivida por um animal. Não pense que esses momentos configuram os três atos de uma obra clássica. Ao contrário, a narrativa cada vez mais se fragmenta, ainda que o seu foco não se distancie da busca por um sentido na vida. Se no início tentamos acompanhar o fluxo de pensamentos da personagem, depois de um tempo eles são tão ininterruptos, que é difícil acompanhar ou criar uma lógica que estruture tais reflexões.
Da mesma forma, as imagens se tornam cada vez mais complexas, carregando elementos mais da ordem dos sonhos do que da razão. Isso pode facilmente afastar o espectador, já que dificilmente vamos entender tudo o que ocorre na tela. Mas se conseguirmos transformar essa intensidade em um elemento positivo, estando de mente aberta para sentir o impacto de algumas das várias referências que a obra apresenta, a experiência cinematográfica pode ser mais sólida. Incomodados, quando enxergamos algum vestígio familiar, chega a ser confortante. Não que isso seja a chave mestra para se entender tudo, mas acalenta o desconforto que, em alguns momentos, nos atinge: para os gamers antigos, esse vestígio pode ser um velho Master System; já para quem passou por uma universidade, pode ser o, “aterrorizante”, manual da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas).
É claro que seguir esse caminho tem seus riscos. O filme pode ocasionar uma indiferença no espectador. E seria arrogância pensar que isso ocorreria devido ao público. Não. Isso pode ocorrer simplesmente porque o diretor errou a mão e fez um filme para seus pares. No entanto, não acredito que esse é o caso de Animal Político. A obra é claramente um “filme de festival”, mas esse rótulo diz pouco sobre as reais características de um filme, e restringi-lo a esse rótulo é tão limitante como criticar um filme somente porque ele é um blockbuster. O humor latente do longa de Tião esquenta a suposta frieza de seu experimentalismo. O dissenso irônico colocado em cena, com a participação de uma vaca no filme é a principal elemento desse humor, como quando ela está se “exercitando” em uma academia. E a cena da glorificação do manual da ABNT é hilária. Essa comicidade irônica pode se tornar amarga em alguns planos, como quando a vaca está em frente a um açougue. É preciso ressaltar que tal discordância se torna repetitiva ao longo do filme, ainda que não deixe de ser engraçado.
Outro aspecto estranho do filme é a forte presença de planos estáticos e distanciados, que não trabalham com uma encenação intensificada, mas reforçam a imobilidade da vaca dentro do seu ambiente. Isto é fator positivo quando se pensa como hoje em dia é valorizado um movimento mais intenso com a câmera. O estático só reforça o absurdo da situação, entrando sempre em sintonia com a voz serena da narração. Alguns desses planos possuem uma força pictórica mais poética do que racional, ainda que fique claro a intensão das imagens: uma vaca “antropomorfizada” meditando no meio de duas movimentadas avenidas, ou coberta por entulhos em um canteiro de obras, representam de forma clara a ocupação transgressora que o filme traça com o espaço urbano. Contudo, esse não é o seu foco, pois para além da cidade, o espaço onírico é mais intenso em alguns momentos do filme. Nesse sentido, algumas referências a 2001, Uma Odisseia no Espaço (1968) são claras e agradam os cinéfilos. Apesar dessas lembranças, algumas nítidas e outras embaçadas, o filme não é uma grande citação. Ele possui identidade própria, para o bem e para o mal. Ainda que se sinta perdido e desorientado, o espectador provavelmente pode ser captado por alguma imagem. No meu caso, foi o plano da longa estrada de livros velhos no meio de um espaço completamente ermo. Caminhando no limiar entre um bom exemplo de cinema de poesia e um experimentalismo alegórico obscuro, Animal Político proporciona uma experiência inquietante ao espectador, algo que é sempre bem-vindo para as salas de cinema de qualquer lugar.
Ano: 2017
Direção: Tião
Roteiro: Tião
Elenco principal: Rodrigo Bolzan, Elisa Heidrich, Victor Laet
Gênero: Drama
Nacionalidade: Brasil
Veja o trailer: