Juliana Rojas e Marco Dutra já não podem mais ser considerados novatos. Há alguns anos, eles passaram a deixar sua marca em festivais como Cannes, Veneza, Berlim e, mais recentemente, Locarno, de onde saíram premiados com As Boas Maneiras – o grande destaque também do Festival do Rio este ano, vencedor das categorias melhor longa de ficção, atriz coadjuvante e fotografia.
Na trama, Ana contrata Clara (a portuguesa Isabél Zuaa, em atuação vigorosa), uma solitária enfermeira moradora da periferia paulistana, para ser babá de seu filho ainda não nascido. Conforme a gravidez avança, Ana (Marjorie Estiano, em entrega total, muito distante do imaginário comumente associado às produções televisivas) começa a apresentar comportamentos estranhos e a partir daí uma relação mais íntima entre as duas se desenrola.
O que, à primeira vista, esboçava enveredar por um caminho já explorado em obras como Que Horas Ela Volta? (2015) e Campo Grande (2015), ou seja, a dúbia relação patroa-empregada e a complexidade que ela evoca dentro da nossa sociedade, se mostra, num segundo olhar, ainda mais labiríntico. Sim, as relações desiguais de classe e raça estão todas lá, no entanto, elas recebem outro tratamento, sendo sabiamente subvertidas em algumas cenas-chave do longa, mesmo que nunca se perca de vista o real estado das coisas.
Sem medo de abraçar o cinema de gênero e seus desdobramentos, ao passo que mergulha no horror, o filme ganha novos contornos com passagens cômicas desenhadas, principalmente, pela montagem de Caetano Gotardo (O Que Se Move), parceiro habitual das produções de Rojas e Dutra, que cria justaposições de planos inventivos e inusitados.
De volta à temática envolvendo a maternidade não desejada/planejada, já vista no curta O Lençol Branco (2004), e à manifestação do corpo (Um Ramo – 2007) como repulsa do desejo proibido, condenação do “pecado” cometido e aversão ao fardo e às responsabilidades compulsórias, a obra adota uma fotografia que trabalha muito bem os diferentes pontos da cidade de São Paulo e suas significações na narrativa. Agregando, ainda, tons cartunescos que muito me remeteram à Gotham City de Tim Burton em Batman (1989), a cada travessia centro-periferia, revela-se um pouco mais a respeito da protagonista, Clara, e inevitavelmente do seu ser e estar no mundo.
É preciso dizer que se tem algo que os diretores dominam com maestria é a construção climática (vide Trabalhar Cansa – 2011), que culmina numa catártica e antológica resolução. Uma fábula fantástica que versa sobre um Brasil tão díspar, estratificado e intolerante. Tão atual.
As Boas Maneiras é um simbólico expoente do que costuma se denominar “novíssimo cinema brasileiro”, em toda sua potencialidade, autoria e ousadia. Com essa dupla de realizadores, nossa cinematografia está em boas mãos.