Versatilidade é uma qualidade que admiro muito em cineastas. Ver um mesmo olhar direcionado para histórias, personagens e gêneros completamente diferentes é uma tarefa árdua e exige uma reinvenção do autor na hora de criar suas narrativas.
Um desses cineastas é o francês François Ozon. Basta observar seus três últimos filmes: um se trata de um drama histórico em preto e branco com toques melodramáticos (Frantz, 2016); outro é um thriller erótico kitsch divertidíssimo e assumidamente absurdo (O Amante Duplo,2017) e, por último, Graças a Deus, drama baseado em fatos reais sobre três homens que foram abusados sexualmente quando menores por um padre .
Graças a Deus se inicia com Alexandre (Poupaud, que já brilhou em Laurence Anyways,2002) toma coragem para escrever uma carta à Igreja Católica dizendo ter sido abusado pelo padre Preynat (Verley). Indignado com a pouca eficácia da Igreja, que ainda tolera que o padre continue até os dias de hoje exercendo sua função próximo de crianças, Alexandre passa a entrar em contato com uma série de outras pessoas que foram abusadas por este mesmo padre. Ele se concentra principalmente em François (Ménochet) e Emmanuel (Arlaud), criando um grupo de apoio que passa a pressionar que haja justiça.
Como apontado, não poderia se tratar de uma obra mais distante do que seus filmes anteriores, mas Ozon consegue manter sua coerência estética. Sempre muito cuidadoso em compor os planos, como a cena inicial, que já denota uma aura de superioridade da Igreja, quase intocável. Este é um sentimento presente durante toda a projeção, já que os esforços homéricos do grupo de apoio para que medidas sejam tomadas são quase inúteis diante do poder e conivência que a Igreja tem diante daqueles crimes.
Assumindo quase um lirismo em sua narrativa por ser composto de várias narrações em off dos personagens lendo cartas, e-mails e afins, Ozon consegue transparecer uma atmosfera sempre pesada e melancólica, que imprime bem o terror que aqueles personagens viveram e os traumas que carregam até hoje. Nunca sendo explícito, os depoimentos dos personagens que contam detalhes do que o padre fez já bastam para enojar qualquer um e trazer peso para a trama.
O roteiro de Graças a Deus é estruturado em três partes e cada uma se concentra em um personagem diferente, começando com Alexandre, passando por François e finalizando com Emmanuel. Este mosaico consegue criar um paralelo interessante sobre os efeitos diversos que este trauma compartilhado exerce sobre cada um. Enquanto Alexandre continua sendo um fiel e devoto cristão, que leva sua família para a missa, François é um radical ateu com aversão a religião. Emmanuel, por sua vez, é o que sofreu de forma mais intensa e física (a maneira como descreve seu pênis, por exemplo, é na mesma medida terrível e chocante).
Por optar essa estrutura, o roteiro do próprio Ozon estabelece muito bem a dimensão imensa que os crimes de pedofilia dentro da Igreja possuem e como foram, ao mesmo tempo, ocultos e extensivos, afetando milhares de crianças. Portanto, se já é assustador o que abuso causou com um personagem, imaginar dois, três… E então milhares deles é algo de desmoronar o psicológico do espectador. Ozon é bastante humano em ao máximo dar nomes, rostos e histórias para essas vítimas.
Concomitantemente, o cineasta institui bem a forma como a Igreja se trata de uma grande burocracia, muito mais preocupada com seu nome a zelar do que se responsabilizar pelas pessoas que, em seu nome, fizeram um crime terrível. A instituição nega tudo até o momento onde se torna impossível dizer o contrário e até hoje tendo casos e mais casos sendo denunciados.
Lembrando muito Spotlight – Segredos Revelados, 2015 (que ganha uma inexplicável referência em um poster em uma cena que se passa numa delegacia), Graças a Deus é uma obra não apenas dura por seu tema, mas muito sensível com as dores e angústias de seus personagens, alavancando François Ozon como um dos cineastas mais interessantes do cinema francês contemporâneo.
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