Século XVIII. A caminho de uma ilha no litoral da França, a pintora Marianne (Noémie Merlant) se lança impetuosamente ao mar, assim como Ada McGrath (Holly Hunter) em O Piano (1993). Ambas impulsionadas por sua devoção à arte, cada qual na tentativa de resgatar o “objeto” que simboliza também uma jornada passional.
Héloïse (Adèle Haenel), filha da Condessa (Valeria Golino), tem seu destino traçado: casar-se com um marido milanês. Para selar o acordo, sempre mencionado com a frieza e distanciamento que um arranjo dessa natureza comporta, um retrato da jovem deve ser produzido e enviado ao pretendente para que este o aprove e, consequentemente, a noiva. Com a recusa de Héloïse em posar, Marianne se passa por dama de companhia para, em segredo à noite, pintar o quadro.
Assim como nos outros trabalhos de Cèline Sciamma, há um evidente esvaziamento do entorno de suas personagens. Não só a reclusão é reforçada, mas um desejo de centralizar essas figuras, deslocando-as, de certa forma, do mundo externo e as inserindo dentro de uma dinâmica própria àquele universo. No subúrbio de Lírios D´Água (2007), a ausência da família/adultos; no vilarejo de Tomboy (2011), também no período de férias escolares, somente alguns poucos vizinhos; em Garotas (2014), um bairro periférico com ares de abandono.
Adotando essa mesma lógica, Retrato de uma Jovem em Chamas não assume um débito histórico com a reconstituição de época. O casarão decadente onde a maior parte da trama acontece é uma espécie de não-lugar, que contrariando a tônica ilustre comumente adotada pelo design de produção, direção de arte e figurino, adquire aspectos mais minimalistas. O convívio entre as mulheres na casa é pautado mais pela ação direta do que pelo questionamento. Portanto, a via de acesso ao universo alheio se dá pela empatia e senso de coletividade, cuja cena-símbolo é a roda cântica em meio à floresta. Há até mesmo momentos de alternância da hierarquia entre elas, como quando a empregada recebe cuidados e é servida.
As informações são entregues aos poucos. Cria-se um jogo de enganos baseado na quebra de expectativas, embora saibamos como a história fatidicamente terminará. Como na cena em que o vestido verde aparece pela primeira vez pressupondo a apresentação de Héloïse. No entanto, quando o plano é aberto, vemos que ele está sendo carregado pela empregada. A primeira aparição de Héloïse de costas, usando capuz, em marcha firme rumo à costa da praia, se revela gradualmente até o instante do contato visual com Marianne, que dará início a uma dinâmica de descoberta e todo um ritual de códigos e sutilezas.
O fogo onipresente — em som e imagem —, é ateado num quadro, mas sem antes passear com a vela pelo corpo da retratada. Todos os gestos são investidos no intento de colocar em perspectiva o olhar do outro que constrói (e também destrói). Ao assumir a figura almejada como veículo para a realização de desejos e sonhos surgem os impasses: como fazer concessões e, ainda assim, manter-se fiel a si próprio? Quais as fronteiras entre a posse e o abrir mão?
Neste movimento de recuo, abre-se espaço para o outro se tornar visível. Talvez a composição que melhor simbolize isso seja o “plano Persona”, no qual Héloïse e Marianne estão justapostas frente à praia e flexionam levemente seus corpos para frente e para trás. A união entre as partes extrapola a ideia de simbiose, estendendo-a à cocriação. Sentimentos e sensações que não podem ser descritos, como pede Héloïse em dado momento, mas vividos de maneira compartilhada, cada uma a seu modo.
Ao evocar o mito de Orfeu, Sciamma confronta aquilo que pertence ao plano das ideias (escolha do poeta e não do amante) às escolhas conscientes das perdas que trazem consigo. Reter na memória uma imagem que personifica a experiência vivida seja, talvez, uma maneira de descer ao reino dos mortos. Se existem elementos na construção de papéis que atribuam à Héloïse o posto da musa, aqui ela se distancia da passividade e é agente. Deslocamento que acena para uma ressignificação da presença feminina, desafiando cânones, convenções e regras. Assim, ao menos na verdade fílmica de Sciamma, artista e fonte de inspiração estão “exatamente no mesmo lugar”.