A ideia e o objetivo de um filme devem estar claros para o diretor desde o inicio – além do que ninguém irá pagar-lhe por vagos experimentos (…) A partir do momento em que a ideia do artista foi objetivada, deve-se supor que ele já encontrou aquilo que deseja transmitir ao público através do cinema, e que não mais está vagando no escuro. – Andrei Tarkvosky
Antes de começar seu trabalho em Solaris (1972), Andrei Tarkovsky submeteu um roteiro para a Mosfilm, mas a resposta que recebeu da instituição foi desanimadora: não era aquele tipo de filme que eles queriam do diretor. Aquele primeiro roteiro era o embrião do que se tornaria O Espelho (1975), uma colagem de memórias, lembranças, sonhos e vontades que permearam a vida do autor até então.
Na verdade, durante o processo de criação do roteiro de Andrei Rublev (1966), Tarkovsky já estava colocando no papel cenas e ideias que depois se tornaram parte integral do seu filme mais autobiográfico.
É impossível falar d’O Espelho com um viés linear. O filme se passa em vários momentos da vida de seu protagonista, Aleksei – o alter-ego do diretor – assim como nos sonhos do mesmo e nas lembranças que ele carrega.
Eu não vou me estender na trama do filme, pois isso seria um desserviço a ele. O Espelho foi concebido como a maior prova de Tarkovsky que o cinema carrega em si todos os atributos para uma arte completamente separada de todas as outras, uma forma de arte que pode capturar não só o tempo como as sensações e emoções de uma determinada situação.
Se A Infância de Ivan foi o desafio que o diretor precisava para saber se realmente tinha o que era preciso para fazer seus filmes, O Espelho é a prova final que ele teria para colocar todas as suas ideias em movimento.
Andrei afirma em seu livro, Esculpir o Tempo, que a ideia e o objetivo do filme devem estar claros para o seu diretor desde o início. Uma vez que aquela ideia foi objetivada, o diretor não mais caminha no escuro, ele precisa fazer de tudo o possível para que a sua visão daquele projeto prevaleça e que todos a sua volta possam ajudá-lo a garantir o resultado por ele determinado.
A produção do seu filme mais pessoal foi extremamente conturbada, mas Tarkovsky sabia exatamente onde queria chegar – aparentemente existiram 32 versões do longa, até o diretor estar plenamente satisfeito com o 33º corte.
Usando os mesmos atores para alguns personagens – a Mãe e Natalya são interpretadas por Margarita Terekhova enquanto Ignat e Aleksei de 12 anos são interpretados por Ignat Daniltsev – e mostrando total controle sobre a direção do filme, Tarkovsky usou de todos os recursos que o cinema lhe oferecia para causar sensações de paz, tensão, pertencimento e desconforto no espectador que estivesse disposto a senti-las.
A primeira cena de O Espelho é Ignat ligando uma tv, e então vemos um garoto, que poderia facilmente ser considerado um Ignat – ou seria Aleksei? – adolescente, em uma consulta para se livrar da gagueira. Durante a cena, vemos uma mulher falando que o problema do garoto é a tensão, que ela está passando da sua cabeça para as suas mãos, e que depois disso ele nunca mais irá gaguejar novamente. Quando o menino fala pela última vez, em alto e bom tom, sem nenhuma gagueira, vemos o título do filme.
Quando vi O Espelho pela primeira vez, ao chegar ao final da obra eu nem mais lembrava dessa cena. Mas revendo a sua filmografia agora, estudando mais sobre a vida do diretor, é possível fazer um paralelo sobre essa cena e toda a sua carreira cinematográfica até então.
Nos seus três filmes anteriores, Tarkovsky estava sempre tentando provar algo. A sua própria capacidade como diretor, sua tentativa de burlar a censura e trazer uma história de um ícone religioso sem pregar a sua religiosidade mas sim questionando a mesma ou transformar um gênero em algo filosófico sem que ele perca a sua essência.
As amarras impostas por tendências, formas ou métodos, mesmo que inconscientemente o seguiam e ele ainda não tinha entendido como se livrar de toda a superficialidade, da plasticidade que às vezes rondava suas ideias.
Para mim, aquele garoto que consegue se livrar da tensão e falar sem gaguejar é, em sua essência, Andrei Tarkovsky, o diretor que a partir de agora se sentia livre e pronto o suficiente para fazer o seu filme mais pessoal e desafiador. Onde as imagens que ele manipulou com tanto cuidado falavam exatamente o que ele queria.
O Espelho pode ser visto como uma obra extremamente autobiográfica, ou então – usando a metáfora do próprio filme – como uma janela para a nossa própria vida e inabilidades.
Quantas coisas gostaríamos de mudar? De fazer de novo? Quantas conversas são esquecidas e lembradas? Quantas lembranças são falsas? Para quem pediríamos perdão, e quantas pessoas realmente nos perdoariam? E, afinal, de que adianta pensar em todas essas coisas se não estamos vivendo ao máximo do nosso potencial agora?
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