Não adianta: alguns filmes – ou cineastas – a gente não pode ficar tentando entender o tempo todo, porque é uma tarefa impossível.

Tentar desvendar todas as camadas de todos os filmes de Fellini é quase que fazer com que seus filmes percam a graça, sumam nas listas de inventividade, poesia e transgressão.

Satyricon figura no topo da lista dos filmes mais malucos de Fellini. Ainda com bastante influência surrealista seguindo o fluxo de Julieta dos Espíritos, Satyricon é baseado na obra homônima de Petrônio, que foi escrita no século I.

Trata-se de uma narrativa fragmentada que basicamente satiriza o novo rico romano dos anos 60 d.C, seus costumes e a política da sociedade italiana da época, repleta de luxúria e extravagâncias.

Somente alguns fragmentos desse romance sobreviveram ao tempo. Fellini se aproveitou deste fato e produziu um filme também fragmentado – ou seja: de saída, já é muito complexo tentar puxar qualquer fio da meada ali.

Vemos uma narrativa episódica, recheada de símbolos, permeada por falas entrecortadas, alguns desastres e bastante bufonaria.

Aliás, toda sorte de corpos e imagens pode ser vista em Satyricon – dos mais bem-acabados e trabalhados até os mais esdrúxulos, passando pelos luxuriosos, grotescos e fantásticos.

Tudo parece fazer parte de um sonho que vai do nada a lugar algum. Por isso digo que, a seu modo, não é um filme para ser entendido, senão experienciado.

Ainda que muitas vezes as falas beirem o ininteligível (ainda mais com a dublagem fora de sincronia dos atores da época), certamente o figurino e a direção de arte oferecem um deleite visual para o espectador.

Se em Julieta dos espíritos acompanhávamos muitos planos-sequência e travellings, aqui podemos acompanhar panorâmicas de cenários absolutamente gigantescos e trabalhados. Dá pra perceber que a equipe de Arte teve trabalho dobrado em cada plano.

Não foi mesmo um dos filmes de Fellini que se destacou por sua destreza técnica ou dramatúrgica. Foi lançado em 1969, mas somente indicado ao Oscar em 1971.

Porém, o Festival de Veneza de 1969 conseguiu premiá-lo na categoria de melhor filme italiano.

Eu gosto de algumas insistências do Fellini, sabe? Esse tocar na ferida dos grandes atores italianos e da sociedade podre (de rica) de sua época. Desde A Doce Vida ele vem fazendo isso, quando coloca o luxo em foco, questionando valores das estrelas e da imprensa.

Aqui, a transgressão está presente no simbólico contido no fato da sociedade buscar o luxo próprio a partir do lixo do outro. Fellini não teve medo de colocar nudez, escatologia e sexualidade na tela – talvez por isso não tenha agradado a crítica (alô, Lars Von Trier, saudades). Mas certamente não deixou de produzir o que queria.

Deve chegar um momento na carreira de um profissional consagrado em que ele decide chutar o balde e fazer o que quer.

A impressão a partir daqui é um pouco esta: Fellini chutou o balde em Julieta dos Espíritos e, dali em diante até pelo menos Amarcord as coisas ficam esquisitas. Mas é bom. Quando ele explode um pouco a casinha, ele mexe com o que todo mundo estava acostumado a ver e a relacionar com ele. E quando volta, vem inteiro e reconhecível uma vez mais.

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