Depois de muita espera, o serviço de streaming da Disney, o Disney+, finalmente chegou ao Brasil. Com um catálogo menor do que na gringa, a plataforma chegou de uma maneira bastante elitizada, e não somente pelo preço. Um dos principais nomes do catálogo, o musical fenômeno Hamilton chegou, mas sem legenda em português (ou em qualquer idioma da América Latina). Segundo a plataforma, não traduzir o musical foi uma “decisão criativa”. Para o Disney+, legendar o musical para outro idioma (há legendas em inglês que estão disponíveis no Brasil) seria corromper a sua originalidade. O posicionamento não coincide, porém, com o que a plataforma esteve fazendo até pouco antes do lançamento: chegou a lançar trailer legendado e o próprio Lin-Manuel Miranda, criador do musical, havia dito lá em meados de junho em seu Twitter que iriam legendar para outros idiomas. No caso de Miranda não sei ao certo, filho de imigrantes porto-riquenhos, é estranho pensar que o ator não tenha interesse por aproximar seus fãs latinos de sua grande obra. Já no caso da plataforma, fica claro o oportunismo. Ao usar um trailer legendado, atraiu os interessados para a ferramenta somente para dar-lhes um balde de água fria: legendas aqui, não.
O fato de uma gigante como a Disney lançar sua plataforma no Brasil sem sequer se dignar a legendar partes importantes de seu conteúdo nos mostra como 1) o acesso à cultura é elitista. Ele não se adapta a quem não se configura dentro de seus padrões, ele exclui. 2) o respeito e apreço que temos pelo nosso próprio idioma é suprimido pela necessidade de abraçar uma cultura hollywoodiana. A mesma que ocupa a maioria das grandes salas de cinema e nos ensina desde muito jovens que produções nacionais são ruins e de pouca qualidade. Esse seria o caso para a Agência Nacional do Cinema, a Ancine, intervir, porém, como já comentamos anteriormente, a Ancine passa hoje por um desmonte e mal consegue dar suporte ao audiovisual nacional, que dirá verificar se o público brasileiro tem acesso honesto a conteúdos de um serviço de streaming provido por um dos maiores conglomerados de entretenimento no mundo.
Com essa atitude, o Disney+ não esconde quem é seu público: apenas os 5% da população que fala inglês*, aquela que teve acesso a aulas de idiomas, que pode pagar para poder aprender essa língua e a mesma que consegue pagar para ter acesso à plataforma. Afirmar que se trata de uma questão criativa é rir na cara do espectador brasileiro. O teatro musical movimentou um total de R$ 1 bilhão somente em São Paulo em 2018**. Esse mesmo teatro musical já adaptou, com a aprovação da Broadway, berço de onde Hamilton saiu, obras como O Fantasma da Ópera, Wicked, Os Miseráveis e queridinhos da própria Disney como O Rei Leão e A Bela e a Fera. Há profissionais qualificados e talentosos que conseguiriam transmitir com veracidade os sentimentos de Hamilton. Apesar de não concordar, compreendo a decisão de não dublar o musical, mas nada justifica a ausência de legendas. Hamilton é um musical importante, atual e que, inclusive, já até possui legendagem disponível pela internet à fora (legendagem essa, devo dizer, de muita qualidade). Não tem sentido ou lógica o posicionamento da Disney para além da falta de interesse. Para a plataforma, não há necessidade em se esforçar para fazer com que o material seja mais palátavel e compreensível ao público.
A atitude da Disney vai de encontro a como pensa a própria Hollywood: eles que lutem para entender, nós falamos o “idioma global”. Aliás, a atitude norte-americana (e, por experiência própria, inglesa) de que não há necessidade de fazer um esforço para compreender outras culturas ou se ajustar a elas, os outros é que devem fazer o esforço. Isso vai muito de encontro com o próprio Oscar que, com exceção de 2020 com a vitória de Parasita, não tem espaço para estrangeiros. A real perda é deles. Como Bong Joon Ho afirmou, se eles apenas superassem a barreira das legendas, dariam de cara com um universo de produções maravilhosas. Mas não há interesse. Ironicamente, a barreira das legendas se apresenta a nós de modo invertido: ainda que a vontade de ter acesso exista, a barreira linguística está lá. Foi colocada lá e quem a colocou não tem o desejo ou a necessidade de tirá-la. Afinal, a Disney terá espectadores. Os assinantes latinos vão estar ali, o dinheiro deles irá para o serviço. Se tem uma coisa que eles sabem fazer é atrair dinheiro sem precisar se flexibilizar muito.
Curiosamente, o Disney+ anunciou que irá mergulhar na produção local na América Latina. A plataforma possui 70 programas originais em desenvolvimento no Brasil, México, Argentina e Colômbia, seus quatro maiores mercados. Claro, não seriam bobos de desperdiçar o “latino money”. Mas não se enganem pela aparente amplificação (que certamente virá com uma chuva de estereótipos), a forma como Hamilton chega ao Brasil (e ao resto da América Latina como um todo) mostra como o serviço realmente enxerga seus consumidores. Isso vai nos impedir de consumir seu produto? Não. Mas que ao menos o consumamos com alguma consciência.
Atualização: Lin-Manuel Miranda publicou hoje, 18, em seu Twitter (em português) que está trabalhando para que legendas em português, espanhol e outros idiomas sejam inseridas no musical. É aguardar para ver.
*Os dados são do instituto cultural British Council, de 2019.
**Dados da Sociedade Brasileira de Teatro Musical.
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