Em 2019, Pedro Almodóvar lançou seu novo filme, Dor e Glória. Donny Correia, professor do curso de Introdução à Linguagem Cinematográfica, analisa nesse artigo não só o longa, mas também a fase atual da carreira do diretor espanhol. O resultado é uma reflexão bela e autoral sobre o personagem de Salvador Mallo e a importância das histórias pessoais. Separa um tempinho e confere só:
A esta altura dos fatos, caro leitor, você já deve estar inteirado da trama do filme mais recente de Pedro Almodóvar. Ele já se encontra no streaming e, em tempos de pandemia, as emissoras fechadas, que liberaram seus programas exclusivos a todos os usuários, já exibem Dor e Glória frequentemente. Eu mesmo o revi há alguns dias no Telecine Cult. Então, não há necessidade de fazer rodeios em torno do resumo da história do cineasta Salvador Mallo, seu drama psicológico, seu padecimento físico e seus desafetos e relacionamentos mal resolvidos, que retornam à sua vida para que ele faça os devidos acertos de contas.
Há um mês, tive de me debruçar sobre um documento importante, um memorial acadêmico, que preparei para dar andamento a um processo de pós-doutorado. Eu vinha postergando essa empreitada por mais de um ano porque alguma coisa me impedia de olhar para a tela do computador e agir de forma pragmática com relação à minha própria história. Um memorial não é apenas uma transcrição de um currículo, em que você elenca atividades profissionais, formações e prêmios recebidos.
A primeira parte de um memorial consiste de uma narrativa em que o indivíduo deve contar ao leitor do documento como sua vida pessoal convergiu para a atuação profissional. Portanto, há que se ter coragem de olhar para tempos pregressos tão íntimos e colocá-los de forma lógica, sem perder o charme.
Charme? Costumo dizer que contar a própria história é como remexer um serpentário de memórias em que, inevitavelmente, nos feriremos com nossa própria peçonha. Relembrar fatos, pessoas, traumas e desafios, tudo em prol de uma sublimação pelo trabalho, pela arte. É uma autoanálise dolorosa. Passamos a limpo os erros cometidos, nos damos conta de que o que nos parecia uma verdade no passado, hoje possui diversos lados para se interpretar. Um memorial é um duro exame que fazemos de nós mesmo defronte ao espelho de nosso Doppelgänger. Na verdade, é como sentar no trono do inferno, em chamas. Nunca estamos prontos para reler nossa própria vida.
Eis, aqui, o ponto chave de Dor e Glória, em que Almodóvar lança mão de seu fictício cineasta vivido por Banderas para remexer questões de sua própria história, mesmo que sua obra completa já faça referências diversas à sua juventude e à contracultura iconoclasta e queer de onde sua inspiração surgiu como uma dádiva.
No entanto, neste filme o diretor vai além. Salvador Mallo está doente, pode ter um câncer no esôfago, sofre de dispneia, enxaquecas, engasga constantemente com alimentos sólidos, tem bloqueio criativo e memórias de fatos fragmentados que ficam ressoando em sua mente.
O filósofo Paul Ricoeur (1913-2005), um dos estudiosos contemporâneos mais dedicados ao estudo da memória como reconfiguração historiográfica comenta que:
[..] uma recordação surge ao espírito sob a forma de uma imagem que, espontaneamente, se dá como signo de qualquer coisa diferente, realmente ausente, mas que consideramos como tendo existido no passado. Encontram-se reunidos três traços de forma paradoxal: a presença, a ausência, a anterioridade. Para o dizer de outra forma, a imagem-recordação está presente no espírito como alguma coisa que já não está lá, mas esteve[1].
Note-se que este paradoxo na ideia de Ricoeur é a tônica de Almodóvar, quando somos apresentados a duas narrativas distintas que correm em paralelo. Primeiro, no presente, em que Mallo vive suas mazelas, ajudado por uma amiga, enquanto tenta acertar contas com um passado recente, que não vemos acontecer em imagens, mas em palavras, portanto não materializado. Em outra instância, um passado mais distante, sua infância, a que assistimos com toda a vivacidade de cores e detalhes que o cineasta usa de praxe.
Na camada das memórias recentes, os fatos são apresentados de acordo com seus efeitos no presente das personagens. Sabemos dos descaminhos da relação de Mallo com seu ex-amigo, com quem rompera por conta de um projeto, e com seu ex-amante, hoje um homem casado, com filhos, que escolheu uma vida completamente diferente dos dias de loucura da juventude, pelo choque de suas narrativas presentes. Elas existem somente enquanto reminiscências sugeridas.
Por outro lado, a infância de Mallo é cirurgicamente examinada em imagens, para reforçar – num primeiro momento – a incisiva narrativa dos anos formativos do garoto que se descobre artista e homossexual, o que consequentemente moldará sua vida que encontramos no presente. No entanto, o que vemos até então, também não pode ser uma história que encerra verdades e materialidades absolutas, já que se tratam de reminiscências do narrador delas, o que – como eu mesmo constatei ao trabalhar em meu memorial – pode levar a uma série de dados traiçoeiros de nossa própria interpretação.
Alerta de Spoiler a seguir
No terço final de Dor e Glória, quando começamos a entender que as reminiscências de Mallo caminham para o momento em que compreendemos que após encarar sua própria história e dela extrair as mais dolorosas sensações que levarão à redenção, aí está novamente a prova de que nem mesmo tais fatos ocorreram exatamente como vimos por quase 90 minutos.
Explico: Salvador Mallo descobre que não tem câncer, mas uma hérnia de hiato, algo simples de se resolver com um bom cirurgião gastroenterologista. Suas relações interpessoais, ainda que não livres de impasses inevitáveis, atingem um nível de solução que já não está mais ao alcance dos agentes, portanto, resolvidas estão. E toda a história do garoto que descobre o mundo dos adultos é, na verdade, o novo filme em que Mallo trabalha, após ter se recuperado de forma mais ou menos satisfatória.
O cineasta-personagem de Almodóvar revirou seu próprio serpentário de memórias, chafurdou na peçonha de si e dos que com ele conviveram, desceu ao calvário de fragmentos de reminiscências não concluídas, para renascer na vida e na obra.
Este profundo mergulho que Almodóvar empreende, neste que considero seu mais pessoal trabalho – muito superior ao sofrível Julieta (2016) – é impregnado dos mistérios que envolvem aquilo a que chamamos “memória”.
Nunca as imagens que guardamos de nossa história serão absolutas, ainda que nos enchamos de certezas ao narrar cada uma. Como notou Ricoeur, conforme o citei, são imagens que estiveram em algum lugar, mas já não estão. Portanto, se não estão, não há necessária obrigação de que tenham sido como as imaginamos quando elas estavam, ou como elas se deram. Olhar para nossas memórias é assistir a um filme que aconteceu num plano inacessível de nós mesmos e tudo que temos são simulacros daquilo que imaginamos que de fato aconteceu. Quem sabe?
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